Até que a morte os separa: A velhice, a perversidade, a graça e a
tortura familiar por uma católica convertida, contemporânea de Greene e Waugh
Para a época em que viveu, Muriel Spark (1918-2006) tomou algumas decisões
estarrecedoras e desconcertantes. Nascida em Edimburgo, de pai judeu e mãe
anglicana, casa-se aos 19 anos com um homem que meses mais tarde descobre ser
maníaco-depressivo. Três anos depois deixa o filho Robin, o pai do seu filho,
Sidney Spark, e a Rodésia, onde viviam os três. De regresso a Inglaterra,
trabalha para os serviços secretos no último ano da Segunda Guerra Mundial. Em
47 torna-se editora da revista Poetry Review e em 54, na sequência de uma depressão
nervosa, converte-se ao catolicismo. Publica o seu primeiro romance em 57, “The
comforters”, e na década seguinte instala-se em Itália, onde passa a viver com
Penelope Jardine, sua companheira até à hora da morte.
Muriel Spark (de quem estão disponíveis em português “Raparigas de
escassos recursos”, também na Relógio d’Água e “O apogeu de Miss Jean Brodie”,
na Ahab Edições) tem 41 anos quando publica “Memento Mori”, o seu terceiro
livro. A velhice, a morte, a decrepitude da vida familiar com os seus segredos
& mentiras são temas abordados com a mesma estarrecedora e desconcertante
frontalidade que caracterizavam a autora, chegando a fazer esquecer que “o escândalo,
nesses tempos, era uma coisa séria”.
À excepção de duas personagens secundárias que se encontram na meia
idade (e a meia idade é pior do que ser velho: “o envelhecimento destroça-nos
os nervos, a velhice propriamente dita é mil vezes preferível!”), as restantes
personagens de “Memento Mori” são muito velhas. Estão a morrer de uma maneira que
apavora tanto quem assiste como a elas próprias. O que mais afecta esta gente não
é a proximidade da sua própria morte, mas a proximidade dos outros que também
estão a morrer! Os casais, quem convive numa casa, são simultaneamente vítimas
e algozes desta tortura diária. São anos e anos de rancores, invejas, ciúmes,
muito medo e muitos segredos. Miss Taylor, a personagem mais benigna do livro,
talvez por estar em paz com a velhice invasora, diz que “ter-se mais de setenta
anos é como estar em guerra. Todas as pessoas nossas amigas estão à beira de
partir ou já partiram, e nós vamos sobrevivendo entre mortos e moribundos, como
num campo de batalha.” Mas esse não é o pior cenário que a autora descreve.
Comparam-se as idades, a parecença com a idade real, os benefícios da
cremação. Os testamentos são usados como derradeira ameaça perante a indiferença
alheia, perde-se a mobilidade e a memória. Há personagens que se comportam como
crianças e outras que são infantilizadas Há quem leia o horóscopo. Há os senis
eufemisticemente apelidados de pacientes “geriátricos” que deambulam como almas
penadas numa enfermaria que é também um eufemismo para o purgatório. Há quem
cace heranças, quem atravesse a cidade para ver uma faixa de perna, quem gaste
quase todo o dinheiro que tem para enviar um telegrama com uma descompostura
literária, e também quem esteja tão obcecado com a perspectiva de ser assaltado
ao ponto de criar as condições perfeitas para se tornar numa vítima. Para não
enfrentar a morte que se aproxima há ainda um investigador que anota os
comportamentos de quem é velho como ele, e lhes dá informações perturbadoras
para depois medir-lhes a pulsação e a temperatura… também há quem trate dos
netos, mas este livro é sobre o medo ao grande desconhecido. Uma das personagens
do livro tem por passatempo cortar os fósforos em duas metades com uma lâmina
para “tornar em duas cada caixa”. Há também um inspector aposentado que
investiga um caso como quem persegue a própria morte e uma série de telefonemas
que atormentam toda esta gente com um assustador lugar comum. Acima de tudo há
o imenso talento de Muriel Spark que consegue ser mais incisiva e directa do
que Patricia Highsmith sem precisar de criar um psicopata assassino.
Dir-se-ia que a proximidade da morte, ou a escrita da autora, é o Mr.
Ripley desta história. Sabemos que as personagens do livro estão apavoradas,
mas o leitor é convidado a comportar-se com a frieza inclemente do psicopata: não
nutrir qualquer piedade por quem
está a morrer, mas antes divertir-se, como num entretém.
Poucas coisas são mais engraçadas do que a desgraça (alheia) e também
se pode ganhar malícia na desgraça. A já citada Miss Taylor, despromovida a avó
Taylor na cama de um hospital para idosos, passa a preferir o “regresso do
sofrimento físico” à “dor desolada da humilhação” de não sentir: “Extraiu desse
estado de espírito uma dignidade
determinada e visível, ao mesmo tempo que abandonava a sua atitude de resistência
estóica perante a dor. Queixava-se mais, pedia com mais frequência a arrastadeira,
e não hesitou, em certa ocasião, quando a enfermeira tardara, em molhar a cama,
como as outras avós tantas vezes faziam.”
Num livro estruturalmente rude (não há cenas de apresentação nem transição;
somos mergulhados e arrancados dos episódios um pouco como quem leva com baldes
de água fria nas costas), sem uma única página mediana, o episódio do chá (páginas
139-140) é o meu favorito: a antiga romancista Charmian Piper, até aí
aparentemente imobilizada e com uma demência que só lhe permite pensar por
associações, fica sozinha em casa à hora do chá e decide tratar sozinha da sua
preparação. A tarefa é um suplício, mas à semelhança dessas patéticas digressões
de fé que anos mais tarde dariam fama aos filmes de Tarkovski, torna-se
grandiosa. Lembram-se da cena da vela na piscina, no fim de “Nostalgia”? Aqui há
“a chama incerta” de um fósforo a ser transportado por “uma mão trémula” e o
vai-vem entre a cozinha e a sala da biblioteca atinge o estado de graça quando é
transportado um prato com biscoitos Garibaldi!
Para quem prefere o erotismo herético de Buñuel à graça cultivada pelos
amigos católicos de Spark (Graham Greene, Evelyn Waugh), termino com o parágrafo em
que uma septuagenária faz uma mostra a um octogenário a troco de uma libra: “ficou
imóvel, de pé, com os braços caídos e as pernas afastadas, com o ar de um
camponês de comédia, a observá-la. Sem alterar a sua postura, ela levantou um
dos lados da saia até deixar que aparecessem, bem visíveis, o remate superior
da meia e a ponta de uma liga. Feito isto, continuou a fazer malha e a olhar
para a televisão. Durante cerca de dois minutos, Godfrey contemplou em silêncio
o remate da meia e o metal luzente da liga. E, por fim, endireitando os ombros,
como se quisesse reaver a sua compostura habitual, sempre em silêncio, voltou a
sair”.
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