As peças acumulam-se e é uma tentação encaixar a nova peça do puzzle às
restantes já existentes (este é o seu 22º romance). Outras tentações
interpretativas provocadas pelo novo livro de António Lobo Antunes (Lisboa,
1942): o título camoniano, que cita o primeiro verso de Babel e Sião (esse
mesmo em que tudo é “bem comparado, Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo
passado”); e a autoreferencialidade (a personagem principal é um “Sr. Antunes”,
que em criança tratavam por “Antoninho” e que no ano de 2007 foi operado a um
cancro no intestino).
Deixemos de lado a literatura comparada e as ligações autobiográficas e
concentremo-nos nas menos de 200 páginas de “Sôbolos rios que vão” (ed. D. Quixote). No que ao título
diz respeito, há alusões suficientes no interior do texto. Como esta: “dei por
mim sobre os rios do Mondego que sem cessar se dividiam e tornavam a unir, dei
por mim que faleci há tantos anos ou não eu, tudo aquilo que era e não existe
mais, a flutuar sobre a água para longe de vocês.” Ou esta: “o cabelo da Maria
Lucinda a confundir-se com o seu e ele deslizando sobre os rios a fazer parte
das ondas.” Ou ainda esta: “três quilos e duzentas que embrulhavam em linho e
ele a ir sobre os rios no sentido da foz”.
Neste livro, que arranca no primeiro dia de Primavera, metáfora e
enredo são um só: o fio de vida que vai da nascente à foz. É a fantasia de
morte de alguém que perde a identidade antes de ter chegado a perceber que
identidade era essa; é a visão em arco de um velho com cancro no intestino a
estudar as linhas da vida “nos ecrãs” e a fazer zapping com a memória; que
salta do passado para o presente e depois outra vez para o passado, em círculos
fechados com as suas repetições, recapitulações e rememorações (o pai que
pergunta “Sabes?” mas que não toca no filho; o ouriço que se desprende de um
castanheiro para se instalar nas tripas em forma de cancro; o tio que não se
julga homem que chegue para viver nem tem coragem para se matar; a criança que
pede “pão, pão” à janela de crianças ricas que sonham com a fome dela; “o pingo
no sapato” que vem a revelar-se um médico; o rabo do gato escutado pela avó na
escuridão; etc).
Dor e memória, doença e recordações negam a possibilidade de inexistência
que uma voz no romance parece sugerir. O problema é quando a dor se escapa, e o
paciente a busca para se reconhecer, ou é perseguido por ela, para ser
identificado: “dado que nenhuma intimidade entre eles, avaliavam-se,
rondavam-se, não se cumprimentavam”. Tudo existe, até o que é inútil, como o
nome de alguém esquecido: “a tralha que arrastamos Santo Cristo, o que faço com
o Amadeu das Neves Pacheco, expulso-o ou permito que se mantenha submerso
juntamente com outros nomes e outros sucessos antigos.”
Com a sua já familiar técnica de falsas concordâncias, duas orações que
aludem a tempos e temas diferentes a criarem uma terceira unidade de sentido, o
sr. Antunes maneja a todo o gaz a máquina de emaranhar paisagens da sua escrita
(cenários principais: uma cama de hospital, no presente; e as imediações do
Mondego e das minas de Volfrâmio, durante e depois da Segunda Guerra Mundial).
Primeiro exemplo: “uma maca a deslizar perto dele e mais ninguém senão
o afinador [de harpas] emendando uma última cavilha no seu peito”;
Segundo exemplo: “eu no centro da cama onde os enfermeiros me puseram à
espera que me toques e tu na pontinha do colchão esperando que eu não te toque
e não toquei a fim de não ser expulso por um cotovelo maçado”;
Terceiro exemplo: “a minha avó nas bancadas dos ourives e eu satisfeito
por o passado continuar a existir salvando-me da ravina à beira do colchão”.
O Sr. Antunes prodigaliza neste livro uma arte que domina com maestria:
escrever nas entrelinhas. Desporto favorito de muitos leitores que fizeram a
transição da ditadura para a democracia, é um jogo que teve cultores por altura
das canções de protesto e que ainda sobrevive nas canções brejeiras. Reparem como o Sr. Antunes disfarça uma
cena de sexo oral (entre a viúva de um major e o pai de Antoninho) através do
acto de comer um salmonete fresco: “mais perfeita que a avó a dividir o
salmonete ao meio e a juntar a pele e a cabeça que o impressionavam num prato
mais pequeno
- Podes comer agora
enquanto o avô perseguia as espinhas com a língua, todo ele à procura
entre a gengiva e a bochecha, encontrava a aresta, perdia-a, voltava a encontrá-la,
empurrava-a com precaução ao longo de um funil de lábios, apanhava-a com dois
dedos, esfregava-os um no outro para se libertar dela, secava-os no guardanapo
e recomeçava a pesquisa”.
Escrito num português que pesca à linha um vocabulário delicioso (em
locuções populares como “mete-se-lhes uma cisma no raciocínio e não a largam
mais atazanando os vivos”), assim como frases que fizeram uma época (“bochecha
de menino me deu vida”, diz o balão que ao encher revela a frase “Armazéns Victória
Tudo Para A Mulher Moderna”), a narrativa, a caracterização de personagens, a
própria ideia de personagem, e já agora de narrativa, são tudo elementos que
fazem fraca figura no livro do Sr. Antunes. Dele podemos dizer o que Nabokov
dizia de Flaubert, que escreve um romance como devia escrever-se poesia, com a
diferença de que o seu “Sôbolos rios” é um romance de ossos partidos.
A maior fragilidade do Sr. Antunes reside em sacrificar a construção
das cenas, ou dos episódios, à
montagem de frases dispersas e imagens fragmentadas. O livro está repassado de
grandes momentos de literatura e o seu efeito dramático chega a ser comovente.
Mas esses efeitos, que resultam de uma técnica de escrita que articula
processos mentais de associação, dinamitam qualquer chance do livro erguer
outra coisa que não seja a catástrofe do cenário, da acção e das personagens.
Este não é bem um
livro ‘sobre’ a velhice nem sobre os prenúncios ou sintomas de morte, encarna
antes a velhice e a morte numa sucessão de desmoronamentos, com a memória no
papel do paramédico munido de um desfibrilador. As amigas senis da mãe do Sr.
Antunes, Júlia, Alda e Clotilde (três nomes lindos, mas que já não se usam)
dizem frases como “Vejo um niquinho”, ou “Estive casada com quem?”, e perdem-se
na “angústia de buscar soleiras no cérebro sem as achar”. Quanto a Maria Otília
(outro nome fora de moda), que “perseguia cabelos brancos no espelho afastando madeixas”
enquanto prometia a si mesma “Nunca serei velha”, essa paixão do Sr. Antunes
que ameaçava deixá-lo sozinho na cama se ele não parasse de tocar-lhe,
impedindo-a de dormir, faz agora um tratamento com “as ampolas de beber da úlcera”
e “o que cura a úlcera não é engolir aquilo, é cortar as duas pontas no lugar
marcado a azul com uma serrinha que se descobre entre os vincos das instruções
ou escondida na embalagem, eis a pequena recompensa da idade, abrir ampolas e
assistir a uma mancha amarela num dedo de água mexido não com a colher, com o
cabo da faca”.
Se temos de aceitar que nas imagens está a o olhar do autor, também não
é menos verdade que na estrutura do texto nos deparamos com a sua visão do
mundo. Para além do espaço-tempo polarizado pela infância a brotar de sensações
confusas e a velhice repleta de memórias dispersas, pode dizer-se que o Sr.
Antunes entrega qualquer outra possibilidade de ordem aos caprichos da visão poética.
Quando esta se desorienta, só resta confusão ou afectações de estilo de um
escritor mimalho. Felizmente, o Sr. Antunes ainda se lembra dos mimos mais
antigos: “ele ao colo da mãe de bochecha entre as rendas, ora à superfície ora
protegido por um casulo no qual se lhe fosse consentido moraria eternamente”.
O Sr. Antunes oferece-nos neste livro muito belo e muito desequilibrado
uma experiência do êxtase em que pavor e descoberta se confundem. Morte e vida
e velhice e sofrimento podem ser muitas coisas, não são é desoladas, nem tão
pouco vazias.
(2010)
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