Delícias e torturas
de ser católico: o pecado e as privações causadas pelo desemprego, numa
obra-prima da literatura italo-americana.
O livro mais celebrado do norte-americano John Fante é “Pergunta ao pó” (1939), com tradução portuguesa pela Ahab Edições e que já este ano foi alvo de uma adaptação cinematográfica protagonizada por Colin Farrel e a cargo de Robert Towne (que nos anos 70, depois de escrever o argumento de “Chinatown”, comprou os direitos do livro). Admirado pela geração Beat, Charles Bukowski foi o seu grande porta-estandarte. No início dos anos 80 deu-o a ler ao seu editor John Martin, que reeditou os seus quatro livros na Black Sparrow Press, assim como dois originais (o primeiro romance que escreveu, “The road to Los Angeles” e o último, “Dreams from Bunker Hill”).
Nascido e criado em Boulder, pequena povoação do Colorado, filho de
imigrantes italianos, John Fante (1909-1983) mudou-se ainda jovem para Los
Angeles, teve a sorte de casar com uma mulher inteligente e culta (Joyce Smart,
editora e poetisa), publicou três livros em três anos (“Wait until spring,
Bandini”, “Ask the dust”, “Dago red”) constituiu família (o filho Dan também é
escritor) e instalou-se como argumentista no complexo sistema de trabalho de
Hollywood, que lhe ofereceu uma vida de classe média e nenhum filme digno de
registo (trabalhou com Orson Welles no projecto inacabado “It’s all true”).
Consumido pela diabetes, que lhe levou as duas pernas e o cegou (“Dreams
from Bunker Hill”, que conclui a tetralogia do seu alter-ego Arturo Bandini,
foi ditado à mulher), em “Small conversation in the afternoon with John Fante”,
Bukowski fez uma espécie de elegia a um homem que se suicidou como escritor
ainda na juventude: “Ele disse ‘eu estava a trabalhar em Hollywood quando o
Faulkner trabalhava em Hollywood e ele era o pior de todos: ao fim da tarde já
estava tão bêbado que nem se aguentava de pé e eu tinha de metê-lo num táxi
todos os dias. Mas quando deixou Hollywood eu deixei-me ficar, e embora não
bebesse tanto se calhar era o que deveria ter feito, se calhar tinha-me dado
coragem para ir atrás dele e sair dali para fora.’ Eu disse-lhe: Escreves tão
bem como o Faulkner. ‘Estás a falar a sério?’ perguntou-me, a sorrir, na cama
do hospital.”
John Fante abandonou a literatura por não lhe dar dinheiro para
sustentar a família. O tema principal de “A Primavera há-de chegar, Bandini” (ed. Ahab),
originalmente publicado em 1938, é esse: como trazer dinheiro para casa quando
o ofício de Svevo Bandini só lhe dá trabalho no Verão e ele vive numa povoação
do Colorado coberta de neve durante o Inverno?
Svevo Bandini caminha pela neve que odeia com um buraco na sola, depois
de perder no póquer o dinheiro que lhe restava e as dez primeiras páginas
descrevem a sua demora até chegar à cama onde a mulher dorme. Bandini enumera o
que tem e não tem, ferve na frustração de ser pobre e na desconfiança de que as
opções que tomou foram as erradas. (Descrito assim, parece que nos metemos num
beco neo-realista). Caminha, pisa a neve maldita, remói na consciência,
regressa ao passado, analisa a situação, faz planos, maldiz a vida, maldiz o
que tem e não tem, pensa na casa por pagar, na mulher, uma “fanática religiosa”
e “sempre à espera de paixão”. Julga-se tão desgraçado e está tão furioso ao
ponto de ser cómico. Nem as frases de consolo da mulher o impedem de ferver. Só
então nos apercebemos que Fante esteve a cozinhar lentamente um coito. Abram-se
as aspas:
“Che sara, sara - disse ela. - o que tem de ser, tem de ser. Chamava-se
Maria e esperava-o com tanta paciência, tocando-lhe os músculos dos quadris, tão
paciente, beijando-o aqui e ali, e então a grande onda de desejo acometeu-o e
ela deitou-se de costas.
“- Ah, Svevo! É maravilhoso! Ele amava-a com uma ferocidade tão doce, tão
orgulhoso de si, sempre a pensar: não é tola nenhuma, esta Maria, sabe muito
bem o que é bom. O grande balão que perseguiam juntos em direcção ao sol
explodiu entre os dois, e ele gemeu com deleite e alívio, como um homem feliz
por ter podido esquecer por momentos tantas ralações, e Maria, muito calada na
sua estreita metade da cama, escutava o bater acelerado do seu próprio coração
e perguntava-se quanto dinheiro teria ele perdido no salão de Jogos Imperial.
Bastante, sem dúvida – possivelmente dez dólares. Maria não tinha acabado o
liceu, mas sabia medir a infelicidade daquele homem pela força da sua paixão.”
A odisseia Invernal da família de Arturo Bandini (alter-ego de Fante,
filho mais velho de Svevo, aqui retratado aos 14 anos e com tão mau carácter
como o pai) não alude aos anos da depressão, como já li em vários textos
grosseiros sobre o livro: a depressão económica nos Estados Unidos acontece nos
anos 30, na sequência da queda da bolsa em 29, e o livro reporta-se à adolescência
de Fante, nascido em 1909. O problema da família Bandini (com tem três filhos
para educar), é o da sazonalidade num pequena cidade de província.
Bandini é trolha (ou “assentador de tijolos”, na tradução de Rui Pires
Cabral para “bricklayer”), não tem encomendas de trabalho durante o
Inverno, a segurança social não
existe e a mulher, sem estudos, não sabe fazer outra coisa para além de cuidar
da casa (e de ter o olhar mais lúcido que alguma vez vi descrito num livro).
Sobram as ajudas: da gordíssima mãe de Maria, que não perde a chance de
envenenar o casal a troco de alguns dólares; do calvo merceeiro que reduz Maria
à invisibilidade, obrigando-a a humilhar-se a troco de fiado; da viúva
Hildegarde, a mulher mais rica da cidade, a troco de companhia…
A temática social, ou económica, se preferirem, tem a sua importância,
e é nas relações de poder, egoísmo, submissão, humilhação e desejo que as
personagens se reflectem mutuamente, em gestos, olhares, pequenos apontamentos
da sua consciência silenciosa. Mas para gozar muito do que o livro tem para
dar, o melhor é atentar nos pormenores descritivos, no engenho com que Fante, um católico educado por católicos
numa sociedade laica, monta as cenas onde se cruzam as percepções e o mundo
interior de cada personagem, e na malícia (ou subtileza) que as personagens
usam entre si.
Nem as crianças são ingénuas. Ainda no primeiro capítulo, na cena do pequeno almoço, Bandini fica
a saber que o filho mais velho, Arturo, atirou o filho mais novo, Federico,
contra a janela, partindo vidro e
cabeça: “Com um simples olhar de soslaio, percebeu que a mãe o tinha chibado.
Jesus! Traído pela própria mãe!” Federico, que nem tinha chorado com o
incidente, fica agora horrorizado ao relembrar a cena. A refeição continua e
Arturo concentra o seu ódio no rosto do pai, com gema de ovo no queixo: “precisava
de se sujar daquela maneira? Não conseguia acertar na boca?” Voltamos a
Federico: “O martírio da noite anterior deixara de o interessar. Tinha encontrado
uma migalha de pão a boiar no leite, o que o fez pensar num barco a motora
atravessar o oceano. Drrrrrrr, fazia o barco, drrrrrrr.”
A cena cresce dramaticamente, a tensão acumula-se e estabiliza depois
num planalto de humor. Fante faz transições admiráveis entre a interioridade
das personagens e as implicações externas das suas acções. Do ponto de vista de
construção, o livro avança degrau a degrau, mas é nesse curto intervalo entre a
dimensão subjectiva (dos pensamentos) e a objectiva (das acções) que Fante
explora o efeito de escândalo entre o indivíduo e o real. Fante (então com 29
anos) explora magistralmente a relação entre a longa duração duma cena a ser
desenvolvida na interioridade das personagens, e a violência com que eclode e
produz real. Essa lenta, quase invisível acumulação de sentimentos e acções minúsculas,
aparentemente inofensivas, e a posterior libertação de energia, com o impacto
duma explosão, é uma arte que sobrevive no cinema de Tarantino e Scorsese.
Fante, em vez da espiral da violência, segue a espiral da consciência.
O episódio da mãe (e do seu olhar) na mercearia, sem dinheiro para fazer
compras; os tormentos de Arturo com o pecado (em particular o episódio do
assassínio da galinha e o dos dez mandamentos, que termina no confessionário);
a sua paixão por uma rapariga virtuosa e as sacanices que comete para tentar
agradar-lhe; o processo de entrada
num estado de depressão da mãe dele, devido à ausência do marido; a cena em que
Bandini regressa com botas novas e dinheiro; a refeição com a sua rica e
apetitosa cliente… este livro é um festim, o “Do céu caiu uma estrela” da
literatura, o melhor presente de Natal. É o próximo livro que vou reler, para
meu deleite.
(2010)
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