quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Fante: a Primavera há-de chegar, Bandini


Delícias e torturas de ser católico: o pecado e as privações causadas pelo desemprego, numa obra-prima da literatura italo-americana.


O livro mais celebrado do norte-americano John Fante é “Pergunta ao pó” (1939), com tradução portuguesa pela Ahab Edições e que já este ano foi alvo de uma adaptação cinematográfica protagonizada por Colin Farrel e a cargo de Robert Towne (que nos anos 70, depois de escrever o argumento de “Chinatown”, comprou os direitos do livro). Admirado pela geração Beat, Charles Bukowski foi o seu grande porta-estandarte. No início dos anos 80 deu-o a ler ao seu editor John Martin, que reeditou os seus quatro livros na Black Sparrow Press, assim como dois originais (o primeiro romance que escreveu, “The road to Los Angeles” e o último, “Dreams from Bunker Hill”).
Nascido e criado em Boulder, pequena povoação do Colorado, filho de imigrantes italianos, John Fante (1909-1983) mudou-se ainda jovem para Los Angeles, teve a sorte de casar com uma mulher inteligente e culta (Joyce Smart, editora e poetisa), publicou três livros em três anos (“Wait until spring, Bandini”, “Ask the dust”, “Dago red”) constituiu família (o filho Dan também é escritor) e instalou-se como argumentista no complexo sistema de trabalho de Hollywood, que lhe ofereceu uma vida de classe média e nenhum filme digno de registo (trabalhou com Orson Welles no projecto inacabado “It’s all true”).
Consumido pela diabetes, que lhe levou as duas pernas e o cegou (“Dreams from Bunker Hill”, que conclui a tetralogia do seu alter-ego Arturo Bandini, foi ditado à mulher), em “Small conversation in the afternoon with John Fante”, Bukowski fez uma espécie de elegia a um homem que se suicidou como escritor ainda na juventude: “Ele disse ‘eu estava a trabalhar em Hollywood quando o Faulkner trabalhava em Hollywood e ele era o pior de todos: ao fim da tarde já estava tão bêbado que nem se aguentava de pé e eu tinha de metê-lo num táxi todos os dias. Mas quando deixou Hollywood eu deixei-me ficar, e embora não bebesse tanto se calhar era o que deveria ter feito, se calhar tinha-me dado coragem para ir atrás dele e sair dali para fora.’ Eu disse-lhe: Escreves tão bem como o Faulkner. ‘Estás a falar a sério?’ perguntou-me, a sorrir, na cama do hospital.”
John Fante abandonou a literatura por não lhe dar dinheiro para sustentar a família. O tema principal de “A Primavera há-de chegar, Bandini” (ed. Ahab), originalmente publicado em 1938, é esse: como trazer dinheiro para casa quando o ofício de Svevo Bandini só lhe dá trabalho no Verão e ele vive numa povoação do Colorado coberta de neve durante o Inverno?
Svevo Bandini caminha pela neve que odeia com um buraco na sola, depois de perder no póquer o dinheiro que lhe restava e as dez primeiras páginas descrevem a sua demora até chegar à cama onde a mulher dorme. Bandini enumera o que tem e não tem, ferve na frustração de ser pobre e na desconfiança de que as opções que tomou foram as erradas. (Descrito assim, parece que nos metemos num beco neo-realista). Caminha, pisa a neve maldita, remói na consciência, regressa ao passado, analisa a situação, faz planos, maldiz a vida, maldiz o que tem e não tem, pensa na casa por pagar, na mulher, uma “fanática religiosa” e “sempre à espera de paixão”. Julga-se tão desgraçado e está tão furioso ao ponto de ser cómico. Nem as frases de consolo da mulher o impedem de ferver. Só então nos apercebemos que Fante esteve a cozinhar lentamente um coito. Abram-se as aspas:
“Che sara, sara - disse ela. - o que tem de ser, tem de ser. Chamava-se Maria e esperava-o com tanta paciência, tocando-lhe os músculos dos quadris, tão paciente, beijando-o aqui e ali, e então a grande onda de desejo acometeu-o e ela deitou-se de costas.
“- Ah, Svevo! É maravilhoso! Ele amava-a com uma ferocidade tão doce, tão orgulhoso de si, sempre a pensar: não é tola nenhuma, esta Maria, sabe muito bem o que é bom. O grande balão que perseguiam juntos em direcção ao sol explodiu entre os dois, e ele gemeu com deleite e alívio, como um homem feliz por ter podido esquecer por momentos tantas ralações, e Maria, muito calada na sua estreita metade da cama, escutava o bater acelerado do seu próprio coração e perguntava-se quanto dinheiro teria ele perdido no salão de Jogos Imperial. Bastante, sem dúvida – possivelmente dez dólares. Maria não tinha acabado o liceu, mas sabia medir a infelicidade daquele homem pela força da sua paixão.”
A odisseia Invernal da família de Arturo Bandini (alter-ego de Fante, filho mais velho de Svevo, aqui retratado aos 14 anos e com tão mau carácter como o pai) não alude aos anos da depressão, como já li em vários textos grosseiros sobre o livro: a depressão económica nos Estados Unidos acontece nos anos 30, na sequência da queda da bolsa em 29, e o livro reporta-se à adolescência de Fante, nascido em 1909. O problema da família Bandini (com tem três filhos para educar), é o da sazonalidade num pequena cidade de província.
Bandini é trolha (ou “assentador de tijolos”, na tradução de Rui Pires Cabral para “bricklayer”), não tem encomendas de trabalho durante o Inverno,  a segurança social não existe e a mulher, sem estudos, não sabe fazer outra coisa para além de cuidar da casa (e de ter o olhar mais lúcido que alguma vez vi descrito num livro). Sobram as ajudas: da gordíssima mãe de Maria, que não perde a chance de envenenar o casal a troco de alguns dólares; do calvo merceeiro que reduz Maria à invisibilidade, obrigando-a a humilhar-se a troco de fiado; da viúva Hildegarde, a mulher mais rica da cidade, a troco de companhia…
A temática social, ou económica, se preferirem, tem a sua importância, e é nas relações de poder, egoísmo, submissão, humilhação e desejo que as personagens se reflectem mutuamente, em gestos, olhares, pequenos apontamentos da sua consciência silenciosa. Mas para gozar muito do que o livro tem para dar, o melhor é atentar nos pormenores descritivos,  no engenho com que Fante, um católico educado por católicos numa sociedade laica, monta as cenas onde se cruzam as percepções e o mundo interior de cada personagem, e na malícia (ou subtileza) que as personagens usam entre si.
Nem as crianças são ingénuas. Ainda no primeiro capítulo,  na cena do pequeno almoço, Bandini fica a saber que o filho mais velho, Arturo, atirou o filho mais novo, Federico, contra a janela,  partindo vidro e cabeça: “Com um simples olhar de soslaio, percebeu que a mãe o tinha chibado. Jesus! Traído pela própria mãe!” Federico, que nem tinha chorado com o incidente, fica agora horrorizado ao relembrar a cena. A refeição continua e Arturo concentra o seu ódio no rosto do pai, com gema de ovo no queixo: “precisava de se sujar daquela maneira? Não conseguia acertar na boca?” Voltamos a Federico: “O martírio da noite anterior deixara de o interessar. Tinha encontrado uma migalha de pão a boiar no leite, o que o fez pensar num barco a motora atravessar o oceano. Drrrrrrr, fazia o barco, drrrrrrr.”
A cena cresce dramaticamente, a tensão acumula-se e estabiliza depois num planalto de humor. Fante faz transições admiráveis entre a interioridade das personagens e as implicações externas das suas acções. Do ponto de vista de construção, o livro avança degrau a degrau, mas é nesse curto intervalo entre a dimensão subjectiva (dos pensamentos) e a objectiva (das acções) que Fante explora o efeito de escândalo entre o indivíduo e o real. Fante (então com 29 anos) explora magistralmente a relação entre a longa duração duma cena a ser desenvolvida na interioridade das personagens, e a violência com que eclode e produz real. Essa lenta, quase invisível acumulação de sentimentos e acções minúsculas, aparentemente inofensivas, e a posterior libertação de energia, com o impacto duma explosão, é uma arte que sobrevive no cinema de Tarantino e Scorsese.
Fante, em vez da espiral da violência, segue a espiral da consciência. O episódio da mãe (e do seu olhar) na mercearia, sem dinheiro para fazer compras; os tormentos de Arturo com o pecado (em particular o episódio do assassínio da galinha e o dos dez mandamentos, que termina no confessionário); a sua paixão por uma rapariga virtuosa e as sacanices que comete para tentar agradar-lhe; o  processo de entrada num estado de depressão da mãe dele, devido à ausência do marido; a cena em que Bandini regressa com botas novas e dinheiro; a refeição com a sua rica e apetitosa cliente… este livro é um festim, o “Do céu caiu uma estrela” da literatura, o melhor presente de Natal. É o próximo livro que vou reler, para meu deleite.
(2010)


Sem comentários:

Enviar um comentário