domingo, 27 de fevereiro de 2011
o guia
“A diferença entre um turista e um jornalista é que o turista paga-me para de ver as maravilhas, enquanto o jornalista paga na condição de ver as desgraças”. Esta anedota foi-me contada por um guia de Bagdad que ficou cego na sequência dum bombardeamento. Perguntei-lhe se tinha acontecido durante ou depois da guerra e ele limitou-se a dirigir os olhos na minha direcção. Apercebi-me da estupidez que tinha acabado de dizer e tentei justificar-me, especificando se tinha sido o exército “invasor” ou as “forças de resistência”. Não fui mais feliz com esta adaptação à terminologia que julgava ser a dele. Com uma vara que tinha na mão, desenhou um círculo no chão à volta do meu saco, onde tinha as câmaras e as lentes, e disse para me pôr lá dentro. “Agora és a força de resistência”. Depois empurrou-me para fora do círculo e pôs-se ele lá dentro. “Queres voltar para aqui?” Aceitei o jogo e disse-lhe que sim. “Então pede-me”. Eu pedi. “Não deixo”. Pedi-lhe para me devolver o saco. “Não, agora o saco pertence ao lugar, se queres o saco tens de tirar-me aqui de dentro.” Empurrei-o e tentei pegar no saco: “Agora sou a invasora e tu és a força de resistência”, disse-lhe. “Não. Tu agora mandas nisto e eu sou quem tu quiseres porque não posso tirar fotografias.” “Se é esse o papel que me atribuis então quero que te ponhas no meu lugar, de quem vê, mas não percebe o que faz.” Ele achou piada à ideia, mas disse-me que primeiro tinha de lhe dar alguns dias para pensar. Voltei uma semana depois e encontrei-o sentado no mesmo lugar, como se já soubesse que eu viria naquele dia. “Já sei o retrato que quero tirar, mas não sei se vais aceitar. Pareces uma rapariga bonita e quero fotografar-te nua”. Aceitei a proposta e levei-o para o meu quarto de hotel. Comecei a despir-me à frente dele e divertiu-me a situação, ficar nua para alguém que não podia ver-me. Ele sentou-se à beira da cama, com a máquina digital em cima das pernas. Parecia observar-me atentamente. Quando acabei de despir-me, peguei na outra máquina e fotografei-o (reparem como tem os olhos arregalados na minha direcção). Ele carregou também no botão. “Cheiras bem”, disse-me, quando me aproximei para ver a imagem no ecrã. Mal se via o tapete e uma ponta do sapato. “Está escura, não se vê quase nada”, disse-lhe, “queres tirar outra?” Ele levantou-se, pôs a mão no meu ombro e respondeu-me que não valia a pena. Enquanto esperava por mim, manteve-se em silêncio, de olhos na postos minha direcção. Finalmente perguntou-me por que é que tirava fotografias (“why take pictures?”) e acrescentou uma frase que prefiro não traduzir: “The more you want to show the less you give to see”
sábado, 26 de fevereiro de 2011
nua descendo a rua
Embora não seja apreciadora de cinema gostei muito de ver um filme iraniano que se passava integralmente no interior dum carro. A minha ideia, quando fui para Teerão, era concentrar-me nos hábitos das pessoas que viajam dentro de veículos privados. As mulheres iranianas podem ser particularmente agressivas ao volante e diga-se de passagem que alguns homens faziam por merecer esse comportamento. Em geral, no entanto, eram muito cordiais (dispenso-me de comentar os hábitos de condução) e não me foi difícil andar à boleia, embora tenha optado preferencialmente por alugar um carro e depois contratar um condutor, que me servia de modelo. Entretanto conheci uma rapariga que era estudante. A sua maior ambição era ser manequim. O corpo dela correspondia ao padrão ocidental da moda, era muito delgada, mas no Irão, dada a morfologia feminina e as limitações impostas no modo de vestir, dá-se preferência às mulheres com um rosto forte e de corpo avantajado, ou pelo menos de peito e ancas bem femininas. A Nazanin tinha um rosto miúdo e era muito elegante no seu estilo andrógino, mas sob aquela roupa que se via obrigada a usar, de tão alta que era, parecia um espeto de pau, como se usa dizer entre a geração dos nossos avós. Como todos as estudantes que conheci, a Nazanin vivia obcecada pelo ocidente, mas era demasiado sofisticada para o gosto comum iraniano. Durante a semana em que trabalhou comigo só falava em actos de rebeldia, julgava que no ocidente as pessoas eram mais audazes e confundia os hábitos de moda praticados em Londres, em Paris ou em Tóquio com gestos provocadores. Ela estava farta do lenço colorido, dos truques usados para atrair, achava que era uma maneira hipócrita das mulheres se submeterem ao desejo dos homens que as impediam de vestir-se livremente. Até a roupa das suas colegas modernas a irritava, aquilo que podia ser muito original em Teerão ela sabia que não passava de uma má cópia de modelos ultrapassados. “O mundo civilizado está a mudar, percebeu-se que não é a roupa que importa porque o corpo é que deve fazer a roupa. O que tem vindo a acontecer com o nosso povo e só vem provar que o Corão a esse respeito está correcto. A vergonha está na cabeça, por isso a tapamos.” Disse-me isto e depois perguntou-me: “Tu salvas-me?” Então parou o carro, sem desligar o motor despiu-se toda, voltou a pôr o lenço preto na cabeça e saiu para a rua. Só tive tempo de tirar esta fotografia. Passei para o lado do condutor e saí dali. A única coisa que eu podia salvar era a imagem dela, quanto a isso não acredito que ela fosse ingénua.
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
o muro ou a baliza
Durante semanas viajei ao longo do muro, quer do lado da fronteira palestiniana, quer do lado da fronteira israelita. O muro tem 80km, para atravessar os dois lados tinha de fazer 160km (estou a fazer uma contabilidade geométrica, o percurso real foi quase o dobro). Havia uma população do lado palestiniano que ficava nas imediações do muro e os miúdos iam para lá jogar à bola, num descampado. Achei piada e deixei-me ficar a observá-los, nem sequer tirei fotografias. Um dos miúdos que não estava a jogar meteu conversa comigo e acabei por instalar-me no quarto de uma casinha que pertencia ao tio dele. Eles iam todos os dias jogar e eu passava uma boa parte do tempo a observá-los. Esse miúdo que eu conheci (chamavam-lhe Ba’ Ali) era muito pequenito, coxeava de uma perna e os outros rapazes só o deixavam jogar à baliza. Só que ele não queria ficar na baliza. A bola dos miúdos era de borracha e como havia por ali muitas pedras já se tinha rompido por mais de uma vez, estava remendada. Houve um dia em que tive de voltar a Israel para fazer alguns contactos e ir às compras. Passei por uma loja de artigos desportivos e lembrei-me de comprar uma bola oficial, daquelas com carimbo da Fifa e marca registada. Como sabia da frustração do Ba’Ali não jogar, ao regressar ofereci-lhe a bola a ele. Mas os outros miúdos não se deixaram corromper. Então o Ba’Ali ficou sozinho a chutar contra o muro, enquanto os outros miúdos continuaram a jogar com a bola de borracha. Durante dois dias repetiu-se a cena, os miúdos com uma bola remendada e o Ba’Ali sozinho, com a sua bola novinha em folha, a jogar uma espécie de futebol-squash. Até que, a meio de mais um jogo, houve um miúdo que mandou uma biqueirada, a bola subiu, subiu e foi parar a Israel. O Ba’Ali, como se não fosse nada com ele, continuou a chutar a bola contra o muro. Os outros começaram a aproximar-se dele e um deles, o mais alto de todos, pediu-lhe a bola emprestada. O Ba’Ali pegou na bola, pô-la de baixo do braço e avisou logo que não ia para a baliza. O outro disse-lhe que ele era coxo, só podia jogar à baliza. Então o Ba’Ali voltou a pôr a bola no chão e a chutá-la contra a parede. Os outros miúdos desandaram e uma hora depois voltaram com uma corda enorme, a que ataram um pedaço de ferro dobrado em forma de u. Durante o resto da tarde entretiveram-se a tentar prender aquela espécie de gancho à extremidade do muro. Preferiram arriscar dar um salto para o outro lado da fronteira, onde a admitir o Ba’Ali na equipa deles. Tirei a fotografia no momento em que um dos miúdos subia pela corda os oito metros do muro. Este pé em grande plano, a pisar a bola, é o da perna coxa do Ba’Ali.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
a greve
Entreposto das nove províncias chinesas, Wuhan é a capital da província de Hubei, que fica no centro do país. Lugar de confluência do Yangtze (o terceiro maior rio do mundo) com o Han, sob o nome de Wuhan congregam-se nas margens dos dois rios três cidades: Hankou, Hanyang e Wuchang. A sua localização geográfica transformou a cidade num centro estratégico de comércio, finança, indústria, investigação tecnológica e ensino (sendo nestas duas últimas áreas apenas ultrapassada por Xangai e Pequim). O progressivo desenvolvimento da cidade, que é uma das mais bem equipadas na área das telecomunicações, provocou uma crescente consciência social, em resultado da sua competitividade e do alarmante aumento do desemprego. A actualização tecnológica em diversos sectores industriais não se fez sem custos: a requalificação técnica implicou o sacrifício de milhares de postos de trabalho. A emergência de uma classe média bem informada, que não ignora a chantagem política em que assenta o seu modo de vida (baseado num modelo colectivista que reforça a influência externa do país no mercado internacional, mas sem as contrapartidas sociais e económicas para os cidadãos, que deveriam recompensar os índices de competitividade a que estão comprometidos), acabou por gerar uma gigantesca manifestação junto às margens do Yangtze. O povo chinês é extraordinariamente trabalhador e disciplinado, mas numa cidade tão moderna como Wuhan torna-se complicada a adaptação a novos empregos, produto das exigências de especialização. Sem uma estratégia governativa coerente, instalou-se o desespero. O milhão de pessoas que se juntou nas ruas aos operários desempregados constituiu uma onda de solidariedade inédita e acabou por redundar num dia de greve geral na cidade, que viu interrompidas as vias de comunicação por ar, terra e água. Nesse dia, a cidade parou, no dia seguinte foi como se nada tivesse acontecido. Sete milhões de habitantes testemunharam o mesmo que eu, mas no dia seguinte não encontrei uma só pessoa que soubesse falar inglês comigo. A fotografia não é explícita: uma multidão compacta avança por uma rua paralela ao rio, no sentido contrário ao da corrente, e entre o manto compacto das roupas, apenas as cabeças emergem à superfície. Os rostos estão de boca aberta (a entoarem cânticos) e apontam na mesma direcção, mas não há braços erguidos, nem cartazes, nem qualquer informação gráfica que possa comprovar tratar-se duma greve. A fotografia foi tirada pela manhã, em contraluz, e depois da revelação escureci os rostos até ficarem apenas silhuetas. As águas do rio que contornam as cabeças dos grevistas mantém-se no entanto cintilantes.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
depois do acidente
Não tinha mais do que cinco, seis anos quando fui a uma exposição de banda desenhada onde vi um trabalho em que as pranchas eram constituídas por recortes de fotografias de revistas antigas. Uma das pranchas era constituída por tiras com parcelas de terra vistas de muito perto e, na tira de baixo, um casal de namorados deitado no chão. Não se via a cara deles, o que dava à composição uma intimidade cheia de mistério e de pudor, com um efeito quase mágico, que resultava duma abordagem muito concreta, muito material, do acto de ver. Durante uma viagem que fiz pela Malásia (com o objectivo de fotografar o processo de modernização urbanística do país), numa altura em que passava pela orla duma floresta, o carro onde eu seguia foi obrigado a interromper a marcha. Tinha havido um acidente e gerou-se um engarrafamento. Quando me aproximei do sítio onde estava o carro que se despistou, os corpos já tinham sido retirados do seu interior. O corpo da mulher estava encostado ao do seu companheiro, que tinha o braço esquerdo por baixo do pescoço dela. Pareciam estar abraçados, com o braço direito dele a descansar sobre a barriga. Com o excesso de calor e de humidade os insectos voltejavam em redor do sangue e uma das testemunhas puxou do seu lenço de bolso para tapar a cabeça da mulher. O companheiro, de olhos abertos, tinha um lenho a toda a largura da testa. O sangue cobria-lhe o rosto e acumulava-se à volta das pálpebras, colando as pestanas e impedindo os olhos de serem fechados. Estava irritada com aquela azáfama e excitação à volta do acidente e lembrei-me do casal estendido no chão, na tal prancha feita com recortes de fotografias. Ainda fiz um enquadramento semelhante, entre os ombros e a cintura, mas optei antes por tirar a fotografia ao alto, mantendo o enquadramento pela cintura e pelos ombros (o que incluía o abraço), mas dum ponto de vista rente ao chão, o que dá esta ilusão dos cadáveres estarem enterrados na vegetação que os cerca. Na parte superior da imagem ainda se vê parcialmente o carro, com o vidro da frente partido e as copas das árvores, que fecham o espaço. Conscientes de que estavam a posar para a posteridade, as testemunhas do acidente ficaram subitamente absortas (não é a imagem que as imobiliza, foram elas que se imobilizaram para a imagem). Reparem neste homem: preparava-se para cobrir os cadáveres, mas fez um compasso de espera. O lençol, que segura junto aos ombros, tapa o seu próprio corpo, apenas dando a ver, sob uma ruga na testa, um olhar que se estende fora do enquadramento.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
entrevista a joão silvestre
O olho direito, o mesmo que utiliza para focar e enquadrar, tem 25 milímetros de diâmetro e está relativamente descaído em relação ao irmão do lado. A pálpebra, “o estore do olho”, quase tapa a parte superior da íris: “vejo através das pestanas”). Vê “maniacamente bem” ao perto, mas sem a ajuda do irmão distrai-se com as distâncias. O olho esquerdo, que fica aberto no momento de carregar no botão (“olha o passarinho”) mantém-se alerta, inspeccionando a imagem a nu. Tem 24 milímetros de diâmetro e tem sempre os “estores subidos”. Ao contrário do irmão à direita, vê mal ao perto (“até as manchas são desfocadas”) mas é capaz de distinguir as garras duma águia a voar (“coitadinha, partiu uma unha”). Juntos fazem um par amoroso “e com muitos filhotes fotografados”, separados são incompletos, ficam inválidos.
“A minha mãe, quando eu era adolescente e vivia complexada por ter um olho maior do que o outro, costumava dizer-me: cada olho sua visão, cada visão seu pensamento. Há dois anos atrás feri a córnea e andei durante duas semanas com o olho esquerdo tapado por uma gaze. Tive de cancelar o trabalho, era como ver as coisas pelo buraco duma fechadura. Não gosto de pensar que ando a espreitar os outros. Enquanto não melhorei, limitava-me a ler e a coser botões.”
Aos 22 anos, João Silvestre é uma das mais respeitadas repórteres fotográficas internacionais. Os editores perseguem-na, as agências propõem-lhe contratos milionários, mas os seus trabalhos são refractários a encomendas, surgem de surpresa, provocando o efeito dum golpe de teatro no contexto da imprensa e da produção de notícias. A sua independência, diz ela, não é para defender a liberdade de expressão nem para fugir à rotina, deve-se antes à incapacidade de suportar as expectativas.
“Não sei trabalhar sob pressão. Quando acabei o curso fiz uma proposta de estágio na redacção de um diário. Aceitaram-me porque ia muito bem referenciada por um professor que tinha sido editor do jornal. No primeiro dia de trabalho deram-me três serviços. Em dois deles nem consegui tirar uma fotografia.” Careta seguida de sorriso nervoso: “Perdi logo a confiança do editor. Durante o resto da semana mandou-me fazer um trabalho de arquivo, sobre bairros ilegais que iam ser demolidos. Voltei à redacção quatro dias depois para fazer as primeiras revelações. O editor, vendo-me só com um rolo na mão, nem me deixou entrar no laboratório: como é que podes ter feito um rolo completo se os bairros da lata já nem existem? disse-me ele. O trabalho tinha sido o sinal de código para dizer: estás despedida.”
Esse mesmo trabalho um ano depois daria a Portugal o primeiro prémio da Word Press Photo. Há quem considere João Silvestre uma fraude. Acusada de montagens e encenações, os seus críticos mais benévolos acham apenas que tem sorte, aparece no lugar certo, no momento certo. Admiram-se que o achado duma vida, que os colegas de profissão ambicionam ter uma só vez durante a carreira, no caso dela se repita com intervalos tão curtos. João Silvestre não está certa que seja um caso de sorte, mas de paciência.
“Como tantas pessoas fazem, leio jornais. Recorto as notícias que considero mais relevantes e depois organizo pastas temáticas, onde colecciono os textos que encontro referentes ao mesmo assunto. Isso permite-me ter uma ideia da evolução dos problemas, antecipar novos desenvolvimentos de um processo em curso. Quando sinto que algo está para acontecer, vou para o local e espero. A sorte, se existe, tem a ver com o tempo de espera. Posso ficar retida durante um dia, durante uma semana, mas também durante seis meses. O meu irmão Jaime foi actor e acontecia-lhe o mesmo. Se fazia publicidade, durava um dia, se fazia cinema participava nas rodagens durante uma semana, se tinha a sorte de participar numa telenovela, podia aguentar-se durante um ano.”
Ó João, claro que não podia.
“Poder, podia. Ele é que não queria.”
A escolha do local faz-se por parâmetros, no interior duma escala que vai aumentando à medida que se aproxima “como um zoom”, até chegar ao epicentro duma história particular, que muitas vezes só de forma indirecta se relaciona com o acontecimento que a levou a dirigir-se a um país, a uma região, a uma cidade ou a uma simples rua. Foi assim que fotografou um grupo de miúdos a escalarem os oito metros do muro na fronteira palestiniana, para irem buscar uma bola de borracha que tinha ido parar a Israel. Foi assim que viu uma mulher iraniana a passear pelas ruas de Teerão coberta por um lenço e nua por baixo. Foi assim que viu um adolescente numa peladinha em Joanesburgo a segurar uma bola de futebol entre a testa e a ponta da sua comprida língua (malabarismo que, prometeu repetir na final do Mundial de futebol para celebrar o primeiro campeão africano). Foi assim que viu dois street racers portugueses a saltarem dos seus carros, no momento em que se despenhavam num desfiladeiro. Foi assim que viu uma menina de seis anos a dar uma canelada em Fidel Castro, antes dele fazer o discurso anual da revolução cubana. E que fotografou um adolescente com um aparelho de correcção nos dentes e um cordão metálico à volta do pescoço a sorrir para um tubarão numa praia de Cape Cod, perante a expressão alucinada de dois banhistas em fuga. E que fotografou um bem disposto terrorista a sair do avião privado de George Bush depois de esvaziar um copo de rum-cola (bebida também conhecida por Cuba Libre). E que fotografou uma criança enlameada numa ilha indonésia, a construir uma casa de brinquedo com pauzinhos, junto a um regato, tendo por trás a casa dos seus pais, destruída na sequência dum maremoto. E que fotografou um milhão de operários chineses numa inédita greve de trabalhadores contra o regime capitalista-comunista.
“O que impressiona as pessoas é a espectacularidade da imagem. Para mim trata-se dum problema de composição. Quanto mais complexa for a imagem, maior é o efeito que causa. Se tirar uma fotografia a uma multidão, o que resulta da imagem não são as pessoas que fazem parte dessa multidão. Por outro lado, se apenas me concentrar numa dessas pessoas elimino o facto dela fazer parte da multidão. Entre estas duas possibilidades, há um sem número de variações possíveis. É como aquela pergunta que me faziam quando eu era miúda: consegues ver o teu pai no meio dos homens ou no meio dos burros? Antes de responder que era no meio dos homens, tentava sempre reconhecer os outros que estavam à volta dele”
E depois diziam-te: então o teu pai é um burro!
“Quanto maior for o número de combinações, mais contraditória é a ideia de multidão, mais difícil se torna ter só uma leitura da imagem. Provocando múltiplas leituras, a imagem desperta outras interpretações”
Onde devia estar um burro aparece o homem!
“São níveis diferentes de atenção. Se um fotógrafo se deixa apanhar pelo primeiro estímulo, é atraído pelo efeito primário do acontecimento e a imagem resulta anedótica. Mas se deixar que o acontecimento se desenrole, o tempo reverte a seu favor. A maioria dos fotógrafos estabelece uma relação pessoal com aquilo que está à sua frente, isso é uma limitação. Estando disponível para as diversas relações que se estabelecem, desaparece o confronto com a imagem. Para mim o confronto deve estar na imagem.”
Quem és tu, João Silvestre? (não percebe a pergunta, sem dúvida inútil, mas as flores de retórica haverão de servir para alguma coisa, como por exemplo presenteá-la com a nossa atrapalhada admiração, que não procura saber quem ela é de facto. A intimidade posta a nu, um rosto ao espelho: do outro lado há qualquer coisa de certeza, mas não é a pessoa frente ao espelho. Apenas o interior dum armário, uma parede esburacada. Mesmo assim, a pergunta mantém-se)
“Sou repórter fotográfica, é o que faço.”
Uma fotografia o que é? A imagem duma boa história e tu não vais contar a tua história. Concentra-te no aqui e agora. O resto são projecções e tu não te interessas por cinema.
“Não sou muito feminina e nunca fui muito bonita (o meu irmão era mais). E também não fui mimada [gargalhadas do entrevistador]. O meu passado é banal, o que me deixa inteiramente satisfeita. [o entrevistador discorda e contra-ataca] Se fui maltratada?”
Faz um sorriso de Gioconda. Agora vais dizer como é que preparas o trabalho e quem for bom entendedor ver-te-á à transparência. Podes começar.
“Opto sempre por um acontecimento que vai dar-se numa data concreta, que resulta dum processo histórico em curso e pode ser mais ou menos relevante na agenda da imprensa internacional.”
Não sejas aborrecida. Fala.
“Quando chego ao local o tema em si já não me interessa, deixo-me levar por assuntos corriqueiros, pelas pessoas que conheço ao acaso. Mesmo algumas coincidências à partida inocentes levam-me a seguir as pistas para onde apontam, não porque acredite na inspiração, mas porque me divirto. Não se trata de fugir às expectativas, simplesmente não lhes dou importância. Não me interessa o lado simbólico quando estou no terreno (seja uma guerra ou uma famosa estância turística), uma boa fotografia arrasta um símbolo consigo, mas pode não ser o mesmo.”
Estou quase a dormir.
“Também não me considero uma iconoclasta.”
Acorda-me se começar a ressonar.
“Uma imagem, a partir do momento em que a fixo, inicia um percurso: revelação, impressão, por aí fora. Se vier a tornar-se popular, transforma-se num ícone, mas isso não depende de mim.”
Já acabaste? Então agora vais falar das tuas influências até a luz vermelha aqui do aparelho se apagar.
“As influências são muitas, mas se não forem os meus críticos e admiradores a encontrarem-nas não hei-de ser eu a facilitar o trabalho. Onde é que vais?”
Vou deitar-me. As tuas respostas dão-me sono.
“Já que insiste recordo um momento importante. Tive um namorado que decidiu ir estudar para Londres. Informou-me a uma segunda, foi-se embora na terça. Três meses depois voltou (não me viu, que eu não deixei). Antes de voltar à Inglaterra deixou aí em casa um caderno. Não me lembro de quase nada do que me escreveu, mas houve uma página que valeu por todas. Ele também gostava de fotografia. Na noite em que me escreveu o caderno houve um homem que meteu conversa com ele e fez-lhe uma proposta. Tinha de escolher entre duas opções: ou ser levado numa máquina do tempo para sítios onde se deram acontecimentos históricos, e seria apenas mais um fotógrafo a juntar aos outros que lá estiveram, ou ser levado para sítios em que não podia saber o que iria acontecer, mas com a certeza de ser o único a fotografar acontecimentos tão importantes como aqueles que se tornaram célebres. É fácil reconhecer importância à história, quando ela já foi escrita e se encontra documentada. Difícil é não fugir dela quando está a acontecer.”
Preferimos imaginar João Silvestre a espreitar por um buraco com um pequeno mundo lá dentro e que ela dá a conhecer, como um bibelô escondido na parte de trás duma prateleira onde uma lagarta foi tecer o seu casulo. Ao transformar-se numa borboleta vai desdobrar as asas e ficar presa lá dentro. A menos que alguém se lembre de espanejar o armário e partir acidentalmente o bibelô, que não passava duma boneca de cerâmica muito feia [risos da entrevistada].
As perguntas acabam, a conversa ganha asas. Quem nasce aprisionado, mesmo que arranje maneira de libertar-se nunca mais deixa de pensar como será a próxima prisão. O truque está em não procurar, para não ter de fugir… Os lugares são maus destinos, mas bons pontos de passagem…
“Sou muito dada a treçolhos”
Já foste a um especialista? Os nossos corpos são como ecossistemas de formas de vida tão pequenas ao ponto de ignorarmos a sua importância… Somos um ponto de passagem…
“Gosto de pensar nas minhas origens. Foi neste país onde tudo começou para mim, é o meu ponto de partida, mas não sinto que seja a minha terra…
“Dentro dum milhão de anos não haverá um único ser humano neste planeta, não por a humanidade se ter extinguido, mas porque encontrou outros lugares para habitar, ou porque se transformou em outras espécies. Para mim, isso seria terrível, da mesma maneira que para a minha mãe seria terrível abandonar o seu país, ou para a minha avó foi terrível abandonar a sua aldeia.”
Quem te diz a ti que dentro de quinhentos anos as pessoas não vão achar o mesmo?
“O mesmo? Daqui a 500 anos a esperança de vida pode ser de 500 anos. Não é grave perder a terra que está na nossa memória, desde que asseguremos a memória da nossa terra [nota da entrevistada: eu não disse nada disso!] Os lugares permanecem, a viagem continua. [nota da entrevistada: nem sei o que isto quer dizer!] A imagem é um testemunho de passagem. [Ó pai, porque é que inventas?] O meu irmão não está comigo, mas acompanha-me.” [Ó pai]
“A minha mãe, quando eu era adolescente e vivia complexada por ter um olho maior do que o outro, costumava dizer-me: cada olho sua visão, cada visão seu pensamento. Há dois anos atrás feri a córnea e andei durante duas semanas com o olho esquerdo tapado por uma gaze. Tive de cancelar o trabalho, era como ver as coisas pelo buraco duma fechadura. Não gosto de pensar que ando a espreitar os outros. Enquanto não melhorei, limitava-me a ler e a coser botões.”
Aos 22 anos, João Silvestre é uma das mais respeitadas repórteres fotográficas internacionais. Os editores perseguem-na, as agências propõem-lhe contratos milionários, mas os seus trabalhos são refractários a encomendas, surgem de surpresa, provocando o efeito dum golpe de teatro no contexto da imprensa e da produção de notícias. A sua independência, diz ela, não é para defender a liberdade de expressão nem para fugir à rotina, deve-se antes à incapacidade de suportar as expectativas.
“Não sei trabalhar sob pressão. Quando acabei o curso fiz uma proposta de estágio na redacção de um diário. Aceitaram-me porque ia muito bem referenciada por um professor que tinha sido editor do jornal. No primeiro dia de trabalho deram-me três serviços. Em dois deles nem consegui tirar uma fotografia.” Careta seguida de sorriso nervoso: “Perdi logo a confiança do editor. Durante o resto da semana mandou-me fazer um trabalho de arquivo, sobre bairros ilegais que iam ser demolidos. Voltei à redacção quatro dias depois para fazer as primeiras revelações. O editor, vendo-me só com um rolo na mão, nem me deixou entrar no laboratório: como é que podes ter feito um rolo completo se os bairros da lata já nem existem? disse-me ele. O trabalho tinha sido o sinal de código para dizer: estás despedida.”
Esse mesmo trabalho um ano depois daria a Portugal o primeiro prémio da Word Press Photo. Há quem considere João Silvestre uma fraude. Acusada de montagens e encenações, os seus críticos mais benévolos acham apenas que tem sorte, aparece no lugar certo, no momento certo. Admiram-se que o achado duma vida, que os colegas de profissão ambicionam ter uma só vez durante a carreira, no caso dela se repita com intervalos tão curtos. João Silvestre não está certa que seja um caso de sorte, mas de paciência.
“Como tantas pessoas fazem, leio jornais. Recorto as notícias que considero mais relevantes e depois organizo pastas temáticas, onde colecciono os textos que encontro referentes ao mesmo assunto. Isso permite-me ter uma ideia da evolução dos problemas, antecipar novos desenvolvimentos de um processo em curso. Quando sinto que algo está para acontecer, vou para o local e espero. A sorte, se existe, tem a ver com o tempo de espera. Posso ficar retida durante um dia, durante uma semana, mas também durante seis meses. O meu irmão Jaime foi actor e acontecia-lhe o mesmo. Se fazia publicidade, durava um dia, se fazia cinema participava nas rodagens durante uma semana, se tinha a sorte de participar numa telenovela, podia aguentar-se durante um ano.”
Ó João, claro que não podia.
“Poder, podia. Ele é que não queria.”
A escolha do local faz-se por parâmetros, no interior duma escala que vai aumentando à medida que se aproxima “como um zoom”, até chegar ao epicentro duma história particular, que muitas vezes só de forma indirecta se relaciona com o acontecimento que a levou a dirigir-se a um país, a uma região, a uma cidade ou a uma simples rua. Foi assim que fotografou um grupo de miúdos a escalarem os oito metros do muro na fronteira palestiniana, para irem buscar uma bola de borracha que tinha ido parar a Israel. Foi assim que viu uma mulher iraniana a passear pelas ruas de Teerão coberta por um lenço e nua por baixo. Foi assim que viu um adolescente numa peladinha em Joanesburgo a segurar uma bola de futebol entre a testa e a ponta da sua comprida língua (malabarismo que, prometeu repetir na final do Mundial de futebol para celebrar o primeiro campeão africano). Foi assim que viu dois street racers portugueses a saltarem dos seus carros, no momento em que se despenhavam num desfiladeiro. Foi assim que viu uma menina de seis anos a dar uma canelada em Fidel Castro, antes dele fazer o discurso anual da revolução cubana. E que fotografou um adolescente com um aparelho de correcção nos dentes e um cordão metálico à volta do pescoço a sorrir para um tubarão numa praia de Cape Cod, perante a expressão alucinada de dois banhistas em fuga. E que fotografou um bem disposto terrorista a sair do avião privado de George Bush depois de esvaziar um copo de rum-cola (bebida também conhecida por Cuba Libre). E que fotografou uma criança enlameada numa ilha indonésia, a construir uma casa de brinquedo com pauzinhos, junto a um regato, tendo por trás a casa dos seus pais, destruída na sequência dum maremoto. E que fotografou um milhão de operários chineses numa inédita greve de trabalhadores contra o regime capitalista-comunista.
“O que impressiona as pessoas é a espectacularidade da imagem. Para mim trata-se dum problema de composição. Quanto mais complexa for a imagem, maior é o efeito que causa. Se tirar uma fotografia a uma multidão, o que resulta da imagem não são as pessoas que fazem parte dessa multidão. Por outro lado, se apenas me concentrar numa dessas pessoas elimino o facto dela fazer parte da multidão. Entre estas duas possibilidades, há um sem número de variações possíveis. É como aquela pergunta que me faziam quando eu era miúda: consegues ver o teu pai no meio dos homens ou no meio dos burros? Antes de responder que era no meio dos homens, tentava sempre reconhecer os outros que estavam à volta dele”
E depois diziam-te: então o teu pai é um burro!
“Quanto maior for o número de combinações, mais contraditória é a ideia de multidão, mais difícil se torna ter só uma leitura da imagem. Provocando múltiplas leituras, a imagem desperta outras interpretações”
Onde devia estar um burro aparece o homem!
“São níveis diferentes de atenção. Se um fotógrafo se deixa apanhar pelo primeiro estímulo, é atraído pelo efeito primário do acontecimento e a imagem resulta anedótica. Mas se deixar que o acontecimento se desenrole, o tempo reverte a seu favor. A maioria dos fotógrafos estabelece uma relação pessoal com aquilo que está à sua frente, isso é uma limitação. Estando disponível para as diversas relações que se estabelecem, desaparece o confronto com a imagem. Para mim o confronto deve estar na imagem.”
Quem és tu, João Silvestre? (não percebe a pergunta, sem dúvida inútil, mas as flores de retórica haverão de servir para alguma coisa, como por exemplo presenteá-la com a nossa atrapalhada admiração, que não procura saber quem ela é de facto. A intimidade posta a nu, um rosto ao espelho: do outro lado há qualquer coisa de certeza, mas não é a pessoa frente ao espelho. Apenas o interior dum armário, uma parede esburacada. Mesmo assim, a pergunta mantém-se)
“Sou repórter fotográfica, é o que faço.”
Uma fotografia o que é? A imagem duma boa história e tu não vais contar a tua história. Concentra-te no aqui e agora. O resto são projecções e tu não te interessas por cinema.
“Não sou muito feminina e nunca fui muito bonita (o meu irmão era mais). E também não fui mimada [gargalhadas do entrevistador]. O meu passado é banal, o que me deixa inteiramente satisfeita. [o entrevistador discorda e contra-ataca] Se fui maltratada?”
Faz um sorriso de Gioconda. Agora vais dizer como é que preparas o trabalho e quem for bom entendedor ver-te-á à transparência. Podes começar.
“Opto sempre por um acontecimento que vai dar-se numa data concreta, que resulta dum processo histórico em curso e pode ser mais ou menos relevante na agenda da imprensa internacional.”
Não sejas aborrecida. Fala.
“Quando chego ao local o tema em si já não me interessa, deixo-me levar por assuntos corriqueiros, pelas pessoas que conheço ao acaso. Mesmo algumas coincidências à partida inocentes levam-me a seguir as pistas para onde apontam, não porque acredite na inspiração, mas porque me divirto. Não se trata de fugir às expectativas, simplesmente não lhes dou importância. Não me interessa o lado simbólico quando estou no terreno (seja uma guerra ou uma famosa estância turística), uma boa fotografia arrasta um símbolo consigo, mas pode não ser o mesmo.”
Estou quase a dormir.
“Também não me considero uma iconoclasta.”
Acorda-me se começar a ressonar.
“Uma imagem, a partir do momento em que a fixo, inicia um percurso: revelação, impressão, por aí fora. Se vier a tornar-se popular, transforma-se num ícone, mas isso não depende de mim.”
Já acabaste? Então agora vais falar das tuas influências até a luz vermelha aqui do aparelho se apagar.
“As influências são muitas, mas se não forem os meus críticos e admiradores a encontrarem-nas não hei-de ser eu a facilitar o trabalho. Onde é que vais?”
Vou deitar-me. As tuas respostas dão-me sono.
“Já que insiste recordo um momento importante. Tive um namorado que decidiu ir estudar para Londres. Informou-me a uma segunda, foi-se embora na terça. Três meses depois voltou (não me viu, que eu não deixei). Antes de voltar à Inglaterra deixou aí em casa um caderno. Não me lembro de quase nada do que me escreveu, mas houve uma página que valeu por todas. Ele também gostava de fotografia. Na noite em que me escreveu o caderno houve um homem que meteu conversa com ele e fez-lhe uma proposta. Tinha de escolher entre duas opções: ou ser levado numa máquina do tempo para sítios onde se deram acontecimentos históricos, e seria apenas mais um fotógrafo a juntar aos outros que lá estiveram, ou ser levado para sítios em que não podia saber o que iria acontecer, mas com a certeza de ser o único a fotografar acontecimentos tão importantes como aqueles que se tornaram célebres. É fácil reconhecer importância à história, quando ela já foi escrita e se encontra documentada. Difícil é não fugir dela quando está a acontecer.”
Preferimos imaginar João Silvestre a espreitar por um buraco com um pequeno mundo lá dentro e que ela dá a conhecer, como um bibelô escondido na parte de trás duma prateleira onde uma lagarta foi tecer o seu casulo. Ao transformar-se numa borboleta vai desdobrar as asas e ficar presa lá dentro. A menos que alguém se lembre de espanejar o armário e partir acidentalmente o bibelô, que não passava duma boneca de cerâmica muito feia [risos da entrevistada].
As perguntas acabam, a conversa ganha asas. Quem nasce aprisionado, mesmo que arranje maneira de libertar-se nunca mais deixa de pensar como será a próxima prisão. O truque está em não procurar, para não ter de fugir… Os lugares são maus destinos, mas bons pontos de passagem…
“Sou muito dada a treçolhos”
Já foste a um especialista? Os nossos corpos são como ecossistemas de formas de vida tão pequenas ao ponto de ignorarmos a sua importância… Somos um ponto de passagem…
“Gosto de pensar nas minhas origens. Foi neste país onde tudo começou para mim, é o meu ponto de partida, mas não sinto que seja a minha terra…
“Dentro dum milhão de anos não haverá um único ser humano neste planeta, não por a humanidade se ter extinguido, mas porque encontrou outros lugares para habitar, ou porque se transformou em outras espécies. Para mim, isso seria terrível, da mesma maneira que para a minha mãe seria terrível abandonar o seu país, ou para a minha avó foi terrível abandonar a sua aldeia.”
Quem te diz a ti que dentro de quinhentos anos as pessoas não vão achar o mesmo?
“O mesmo? Daqui a 500 anos a esperança de vida pode ser de 500 anos. Não é grave perder a terra que está na nossa memória, desde que asseguremos a memória da nossa terra [nota da entrevistada: eu não disse nada disso!] Os lugares permanecem, a viagem continua. [nota da entrevistada: nem sei o que isto quer dizer!] A imagem é um testemunho de passagem. [Ó pai, porque é que inventas?] O meu irmão não está comigo, mas acompanha-me.” [Ó pai]
domingo, 20 de fevereiro de 2011
jaime roque (1988-2007)
Foram momentos estonteantes de humor destemido e encanto deveras estroina, mas não sem estados da alma (a alma não é uma cadeira em que nos podemos sentar, como foi dito num baile de máscaras). Na sua linguagem de peixe, escreveu poemas, cantou-os mal vestido, por vezes nem vestido. Deixa em casa dos pais um baú de roupa colorida, minúsculas recordações, coágulos, tachas, labaredas. Deixa as clareiras da sua juventude alada, de potros salgados, de pólen aéreo, de abelhas dribladoras, de meigas formigas desencarreiradas e uma andorinha perdida em plena borrasca primaveril. Vai em busca de outras carreiras. De melhor companhia. Já não mora aqui. Não representou um tipo geracional, não se deixou desidratar em celebrações etílicas ou em somatizações psicotrópicas. A sua alegria de viver não foi a da gargalhada brutal por haver uma braguilha aberta na festa, mas a da perspicácia sorridente, ao notar que o mesmo convidado esmagado pela chacota dos primatas compôs o colarinho enquanto procurava um espelho inexistente. Na sua dedicação comprometeu-se a resgatar a fantasia, essa parcela da infância que se desorienta com a mudança de idade e que um dia alguém achou por bem expurgar dos homens, no momento em que mais necessidade tinham dela. (Pai, pára com isso). Deixa-me, filho, mas não me deixes parar. (Cala-te e vem dar um passeio). Sim, vamos, em silêncio, como num jogo de esconde.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
a arte perdida da fumigação
Oferendas, dádivas, holocaustos, sacrifícios, homenagens, rituais, promessas cumpridas, pagamentos de dívidas são expressões diversas dum sentimento comum, o de transferirmos para o desconhecido a incapacidade em alterar um determinado aspecto da realidade que nos afecta, encontrando em práticas substitutivas um crédito que nos permite suportar, e até mesmo fruir, a espera de algo que se caracteriza pela ausência.
Primeira cena: Duas crianças atiçam as chamas duma fogueira, nas traseiras duma casa de camponeses. Sob o crepitar da lenha, faúlhas elevam-se das chamas. Do lado oposto da fogueira, sentada sobre uma cerca, a mãe das crianças fala ao telemóvel e leva o cigarro à boca.
Pretendemos falar do malefício dos cigarros, como tantos especialistas bem intencionados, mas não o do terrorismo médico (uma estratégia de propaganda cuja violência reside em fazer-nos habitar cenários que não nos pertencem necessariamente). Antes de tratarmos dos fumadores, concentremo-nos no fumo que libertam. Melhor ainda, voltemos atrás, a um tempo sem fumadores, em que nenhuma mulher ou homem conheciam o hábito ou sofriam do vício.
Segunda cena: As crianças que inalam o fumo e o expelem para a atmosfera fumigam a cozinha. Os vapores dos cozinhados acumulam gorduras e humidade, atraem insectos, fungos e demais formas biológicas inacessíveis a olho nu, aí encontrando minúsculos ecossistemas altamente nutritivos, suficiente justificação para se instalarem. Ao secarem o ar, com o fumo que expelem, as crianças fumigadoras atenuam a intensidade destes sabores que se fundem na atmosfera e atraem pequenos invasores de faro apurado e apetite duvidoso.
Não basta fumigar os cantos da cozinha. Organizados em regimentos de batedores, equipas de exploradores ou grupos de excursionistas, há insectos cheios de curiosidade a passearem por ângulos e cantos, espaços cuja intersecção de linhas lhes permite sondar um mundo bidimensional que por enquanto mal dominam.
A extremidade de uma superfície horizontal (o chão, o tampo de uma mesa) em contacto com uma linha de intersecção (um copo, a beira de um prato, os pés da mesa, a porta do fogão, uma parede) são paisagens sobejamente atraentes para merecerem uma visita. Mas como a respiração ali não é agradável (resultado da secagem do ar pela fumigação), retiram-se em direcção a outros pequenos mundos de arestas por descobrir (entre as nossas amigas formigas, também se encontram aventureiras).
Havendo abundância de alimento, as baratas estão dispostas a resistir à má qualidade do ambiente, usando as cozinhas e outras divisões como colónias. Se não encontrarem alimento retiram-se, embora no caso das baratas tenhamos de dar crédito à sua extraordinária capacidade de adaptação, aprendendo a digerir os víveres mais inverosímeis. Outra possibilidade é as baratas criarem cativeiros (ou insectários) de espécies ainda mais pequenas que lhes sirvam de alimento, cabendo à baratas encontrar o sustento da criação que faz parte da sua cadeia alimentar.
Não devemos surpreender-nos com a falta de critério das baratas. Nas grandes cidades, elas actuam num permanente estado de guerra: a precisão dos seus ataques, quando entram pela frincha de uma parede por trás do fogão, é bem mais importante do que a sua capacidade de julgar a qualidade do resgate, para a qual não lhes sobra tempo nem disposição.
As crianças continuam a fumigar, inspiram a plenos pulmões. Não lhes fará mal? A corrente de ar que entra pela chaminé e encontra uma saída na janela aberta, expulsa as partículas gasosas que se desprendiam da combustão de folhas. Na cozinha apenas resta o aroma doce da planta queimada (e fumigada), engenhosamente escolhida para despistar as baratas, entontecer as formigas e relaxar agradavelmente as crianças depois da fumigação. E que planta usada para a fumigação é essa? Terão de perguntar às crianças
“Ó mãe, que planta é esta?”
“Pergunta à avó”
O ódio mítico que os cozinheiros nutrem por baratas explica-se pelo facto da presença destas constituir a prova de que os seus cuidados de higiene estão longe da perfeição desejada ( barreira de segurança que criaram termina nos rolos de cotão pintalgados de manchas de bolor e em pingos de gordura polvilhados de saborosas migalhitas). Essa intimidante coabitação ofende as prerrogativas sociais do proprietário de cozinha (antevendo que o próximo passo é ser obrigado a respeitar a igualdade de voto de uma barata numa reunião de condomínio). Quanto mais souber da barata, tanto maior será a tendência para afeiçoar-se a ela. Opta assim por uma repulsa extemporânea e cheia de preconceitos.
Os frequentadores de cozinhas tendem a perseguir com maior acuidade as formigas. Tal deve-se ao facto das formigas (assim como as moscas) serem mais fáceis de apanhar e aquilo que os frequentadores de cozinha verdadeiramente perseguem não é a eliminação do bicharoco intruso, mas as boas graças da cozinheira. Bem, o motivo principal, para falar a verdade, pode ser outro. O frequentador de cozinhas alimenta-se dos produtos que por lá se encontram e não lhe agrada que estejam a depenicar-lhe o prato mesmo depois de acabar a refeição. O insecto visível à vista desarmada (expressão deveras enganadora neste contexto) ofende o seu estatuto privilegiado de poder servir-se, e não está disposto a partilhá-lo com uma mosca pedinchona e um carreiro de formigas salteadoras (seria como reconhecer à esmola e ao furto o estatuto de actividades económicas).
As crianças sentem-se reconfortadas. Após a fumigação, foi-lhes reconhecido o direito a sentarem-se à mesa para jantar com os adultos. Como recompensa da fadiga terão um sono descansado. Maas não isento de ataques aéreos…
Terceira cena: duas crianças dormem destapadas numa cama de casal, protegida por uma rede pendurada no tecto. A parede, por trás da cama, projecta a sombra das asas duma borboleta, poisada no abat-jour do candeeiro por cima da mesa de cabeceira. Sobre uma superfície rosada e curva (o ombro do rapaz) uma melga bebe-lhe o sangue.
Uma melga que as pique durante a noite é quanto basta para maldizerem, ao acordar, a péssima fumigação executada na véspera.
“Coitadinhos”, lamenta a avó Celeste, cobrindo os netos de mimos, depois de ter-se esquecido na véspera de proteger as camas com um mosquiteiro.
“Mas não foram as melgas?”, pergunta-lhe o neto espevitado e inflamado.
Quarta cena: Eis que já não sobram insectos em casa (ou eles não se deixam ver). Mesmo assim, as crianças calcorreiam as divisões de fumigador na boca, com óbvias intenções vingativas. Estudemos um pouco melhor o instrumento: um cone de papel pardo aceso numa das pontas, contendo folhas secas esmigalhadas. Com a outra extremidade na boca, a criança fumigadora chupa o ar, de forma a atear as folhas. Já houve um tempo em que, menos experiente, se limitava a soprar. O fumo que saía do fumigador era insuficiente e pouco depois apagava-se. Outra técnica que a criança fumigadora aprendeu é a reter o máximo de fumo na boca, de forma a expelir maiores quantidades para a atmosfera.
Fumigar é uma tarefa doméstica, embora apresente semelhanças com as queimadas nos campos. É uma tarefa desempenhada por crianças, as únicas que nela encontram maneira de se divertirem. Sopram o fumo para o tecto e observam alegremente as miniaturas de nuvens, fazendo, refazendo e desfazendo criações, recriações e descrições imaginadas.
Mas os acidentes acontecem, principalmente em tarefas que dependem do trabalho infantil. O menino distrai-se e engole o fumo. A rapariga, mais velha do que o irmão, fica estática de pavor. A expressão da criança que engoliu o fumo é fulminada por um êxtase rápido e logo se transforma numa máscara de vácuo. Uma revolução opera-se num organismo, o seu, que ainda lhe é estranho, mas que se manifesta subitamente, de forma caótica e apavorante. O menino regressa de repente a si: tosse, como a caldeira dum vulcão ao cuspir a sua gosma de fogo. Por fim chora, reacção emocional que simultaneamente irriga as vias óptica e respiratória afectadas.
A rapariga ao seu lado, observou tudo e fica confusa numa amálgama de medo, perigo e curiosidade: E se for bom – questiona-se ela – mesmo que por um segundo? Meio segundo já é melhor que nada, e tudo pode ser eterno num segundo, principalmente no cérebro arejado duma criança, cheio de neurónios desabitados e extáticas experiências nunca vividas. A rapariga acende o fumigador. Ateia-o numa inspiração, abre a traqueia e expulsa lá de dentro...
Escuta lá miúda, diz-me uma coisa: o que é que estava dentro do fumo?
“Um comboio”
Um comboio de fumo. Não viu tudo, como o rapaz, mas apenas um comboio. Os neurónios não se acenderam todos, apenas alguns ficaram iluminados, na forma de muitas carruagens a perfurarem um túnel no vácuo. Ainda há um instante dentro de si, dando a sensação de um brinquedo, o comboio é agora uma imagem à sua frente.
Por trás do fumo insinua-se uma temível projecção: a de um comboio gigante, que quer voltar para dentro dela, apesar do tamanho ser desproporcionado. Nessa noite não volta a fumigar. Este acto temerário doravante representa um pequeno passo para o fumigador, mas um grande salto para o surgimento do fumador.
O menino que fumou inadvertidamente tão cedo não voltará a querer repetir uma experiência tão assustadora. Por seu lado, a rapariga que fumou em consciência não voltará a fumigar como antes. Ela sabe agora do fascínio (que experimentou) e do perigo contido no fumo (observado no menino). Identifica-se com os insectos e questiona-se sobre a possibilidade de retirarem algum bem da fumigação (à semelhança do comboio que avistou ao inalar).
Embora se exponha aos malefícios já identificados no irmão, precisa de experimentar outra vez, não só para iluminar com outras imagens mais alguns neurónios em branco, mas também para tentar perceber que imagens ocorrerão ao insecto fumigado. Ambos partilham imagens, mas à distância de quantas dimensões? As imagens da criança são ópticas (o fumo do comboio), as da barata olfácticas (o fumo da planta queimada).
Quinta cena: plano aproximado de um carril, atravessado pelas rodas de um comboio. A deslocação do ar agita as plantas que crescem junto às tábuas. Entre a gravilha que rodeia o carril, beatas de cigarro.
Caso venham a tornar-se fumadoras, o menino arrisca consumir-se, como um doente viciado no veneno que lhe tira a saúde, enquanto a rapariga pretende consumar essa imagem que lhe dá acesso à outra dimensão, a dimensão que está do lado da experiência do outro (e esse outro pode ser um menino engasgado ou uma barata que muda de rota).
Tudo é fugaz, os insectos mais ainda. O sentimento de ausência não só define um saudoso coração amputado de companhia, como distrai e por fim faz esquecer uma esperançosa carreira entomológica. Quanto mais envenenada de substâncias tóxicas estiver a composição do cigarro, maior será a vontade do fumador em exterminar o insecto desconhecido. Por outro lado, se o tabaco for aromático e o papel de boa qualidade, o perfume que se expande no ar irá agradar ao desconhecido a cujas imagens ele quer aceder.
Primeira cena: Duas crianças atiçam as chamas duma fogueira, nas traseiras duma casa de camponeses. Sob o crepitar da lenha, faúlhas elevam-se das chamas. Do lado oposto da fogueira, sentada sobre uma cerca, a mãe das crianças fala ao telemóvel e leva o cigarro à boca.
Pretendemos falar do malefício dos cigarros, como tantos especialistas bem intencionados, mas não o do terrorismo médico (uma estratégia de propaganda cuja violência reside em fazer-nos habitar cenários que não nos pertencem necessariamente). Antes de tratarmos dos fumadores, concentremo-nos no fumo que libertam. Melhor ainda, voltemos atrás, a um tempo sem fumadores, em que nenhuma mulher ou homem conheciam o hábito ou sofriam do vício.
Segunda cena: As crianças que inalam o fumo e o expelem para a atmosfera fumigam a cozinha. Os vapores dos cozinhados acumulam gorduras e humidade, atraem insectos, fungos e demais formas biológicas inacessíveis a olho nu, aí encontrando minúsculos ecossistemas altamente nutritivos, suficiente justificação para se instalarem. Ao secarem o ar, com o fumo que expelem, as crianças fumigadoras atenuam a intensidade destes sabores que se fundem na atmosfera e atraem pequenos invasores de faro apurado e apetite duvidoso.
Não basta fumigar os cantos da cozinha. Organizados em regimentos de batedores, equipas de exploradores ou grupos de excursionistas, há insectos cheios de curiosidade a passearem por ângulos e cantos, espaços cuja intersecção de linhas lhes permite sondar um mundo bidimensional que por enquanto mal dominam.
A extremidade de uma superfície horizontal (o chão, o tampo de uma mesa) em contacto com uma linha de intersecção (um copo, a beira de um prato, os pés da mesa, a porta do fogão, uma parede) são paisagens sobejamente atraentes para merecerem uma visita. Mas como a respiração ali não é agradável (resultado da secagem do ar pela fumigação), retiram-se em direcção a outros pequenos mundos de arestas por descobrir (entre as nossas amigas formigas, também se encontram aventureiras).
Havendo abundância de alimento, as baratas estão dispostas a resistir à má qualidade do ambiente, usando as cozinhas e outras divisões como colónias. Se não encontrarem alimento retiram-se, embora no caso das baratas tenhamos de dar crédito à sua extraordinária capacidade de adaptação, aprendendo a digerir os víveres mais inverosímeis. Outra possibilidade é as baratas criarem cativeiros (ou insectários) de espécies ainda mais pequenas que lhes sirvam de alimento, cabendo à baratas encontrar o sustento da criação que faz parte da sua cadeia alimentar.
Não devemos surpreender-nos com a falta de critério das baratas. Nas grandes cidades, elas actuam num permanente estado de guerra: a precisão dos seus ataques, quando entram pela frincha de uma parede por trás do fogão, é bem mais importante do que a sua capacidade de julgar a qualidade do resgate, para a qual não lhes sobra tempo nem disposição.
As crianças continuam a fumigar, inspiram a plenos pulmões. Não lhes fará mal? A corrente de ar que entra pela chaminé e encontra uma saída na janela aberta, expulsa as partículas gasosas que se desprendiam da combustão de folhas. Na cozinha apenas resta o aroma doce da planta queimada (e fumigada), engenhosamente escolhida para despistar as baratas, entontecer as formigas e relaxar agradavelmente as crianças depois da fumigação. E que planta usada para a fumigação é essa? Terão de perguntar às crianças
“Ó mãe, que planta é esta?”
“Pergunta à avó”
O ódio mítico que os cozinheiros nutrem por baratas explica-se pelo facto da presença destas constituir a prova de que os seus cuidados de higiene estão longe da perfeição desejada ( barreira de segurança que criaram termina nos rolos de cotão pintalgados de manchas de bolor e em pingos de gordura polvilhados de saborosas migalhitas). Essa intimidante coabitação ofende as prerrogativas sociais do proprietário de cozinha (antevendo que o próximo passo é ser obrigado a respeitar a igualdade de voto de uma barata numa reunião de condomínio). Quanto mais souber da barata, tanto maior será a tendência para afeiçoar-se a ela. Opta assim por uma repulsa extemporânea e cheia de preconceitos.
Os frequentadores de cozinhas tendem a perseguir com maior acuidade as formigas. Tal deve-se ao facto das formigas (assim como as moscas) serem mais fáceis de apanhar e aquilo que os frequentadores de cozinha verdadeiramente perseguem não é a eliminação do bicharoco intruso, mas as boas graças da cozinheira. Bem, o motivo principal, para falar a verdade, pode ser outro. O frequentador de cozinhas alimenta-se dos produtos que por lá se encontram e não lhe agrada que estejam a depenicar-lhe o prato mesmo depois de acabar a refeição. O insecto visível à vista desarmada (expressão deveras enganadora neste contexto) ofende o seu estatuto privilegiado de poder servir-se, e não está disposto a partilhá-lo com uma mosca pedinchona e um carreiro de formigas salteadoras (seria como reconhecer à esmola e ao furto o estatuto de actividades económicas).
As crianças sentem-se reconfortadas. Após a fumigação, foi-lhes reconhecido o direito a sentarem-se à mesa para jantar com os adultos. Como recompensa da fadiga terão um sono descansado. Maas não isento de ataques aéreos…
Terceira cena: duas crianças dormem destapadas numa cama de casal, protegida por uma rede pendurada no tecto. A parede, por trás da cama, projecta a sombra das asas duma borboleta, poisada no abat-jour do candeeiro por cima da mesa de cabeceira. Sobre uma superfície rosada e curva (o ombro do rapaz) uma melga bebe-lhe o sangue.
Uma melga que as pique durante a noite é quanto basta para maldizerem, ao acordar, a péssima fumigação executada na véspera.
“Coitadinhos”, lamenta a avó Celeste, cobrindo os netos de mimos, depois de ter-se esquecido na véspera de proteger as camas com um mosquiteiro.
“Mas não foram as melgas?”, pergunta-lhe o neto espevitado e inflamado.
Quarta cena: Eis que já não sobram insectos em casa (ou eles não se deixam ver). Mesmo assim, as crianças calcorreiam as divisões de fumigador na boca, com óbvias intenções vingativas. Estudemos um pouco melhor o instrumento: um cone de papel pardo aceso numa das pontas, contendo folhas secas esmigalhadas. Com a outra extremidade na boca, a criança fumigadora chupa o ar, de forma a atear as folhas. Já houve um tempo em que, menos experiente, se limitava a soprar. O fumo que saía do fumigador era insuficiente e pouco depois apagava-se. Outra técnica que a criança fumigadora aprendeu é a reter o máximo de fumo na boca, de forma a expelir maiores quantidades para a atmosfera.
Fumigar é uma tarefa doméstica, embora apresente semelhanças com as queimadas nos campos. É uma tarefa desempenhada por crianças, as únicas que nela encontram maneira de se divertirem. Sopram o fumo para o tecto e observam alegremente as miniaturas de nuvens, fazendo, refazendo e desfazendo criações, recriações e descrições imaginadas.
Mas os acidentes acontecem, principalmente em tarefas que dependem do trabalho infantil. O menino distrai-se e engole o fumo. A rapariga, mais velha do que o irmão, fica estática de pavor. A expressão da criança que engoliu o fumo é fulminada por um êxtase rápido e logo se transforma numa máscara de vácuo. Uma revolução opera-se num organismo, o seu, que ainda lhe é estranho, mas que se manifesta subitamente, de forma caótica e apavorante. O menino regressa de repente a si: tosse, como a caldeira dum vulcão ao cuspir a sua gosma de fogo. Por fim chora, reacção emocional que simultaneamente irriga as vias óptica e respiratória afectadas.
A rapariga ao seu lado, observou tudo e fica confusa numa amálgama de medo, perigo e curiosidade: E se for bom – questiona-se ela – mesmo que por um segundo? Meio segundo já é melhor que nada, e tudo pode ser eterno num segundo, principalmente no cérebro arejado duma criança, cheio de neurónios desabitados e extáticas experiências nunca vividas. A rapariga acende o fumigador. Ateia-o numa inspiração, abre a traqueia e expulsa lá de dentro...
Escuta lá miúda, diz-me uma coisa: o que é que estava dentro do fumo?
“Um comboio”
Um comboio de fumo. Não viu tudo, como o rapaz, mas apenas um comboio. Os neurónios não se acenderam todos, apenas alguns ficaram iluminados, na forma de muitas carruagens a perfurarem um túnel no vácuo. Ainda há um instante dentro de si, dando a sensação de um brinquedo, o comboio é agora uma imagem à sua frente.
Por trás do fumo insinua-se uma temível projecção: a de um comboio gigante, que quer voltar para dentro dela, apesar do tamanho ser desproporcionado. Nessa noite não volta a fumigar. Este acto temerário doravante representa um pequeno passo para o fumigador, mas um grande salto para o surgimento do fumador.
O menino que fumou inadvertidamente tão cedo não voltará a querer repetir uma experiência tão assustadora. Por seu lado, a rapariga que fumou em consciência não voltará a fumigar como antes. Ela sabe agora do fascínio (que experimentou) e do perigo contido no fumo (observado no menino). Identifica-se com os insectos e questiona-se sobre a possibilidade de retirarem algum bem da fumigação (à semelhança do comboio que avistou ao inalar).
Embora se exponha aos malefícios já identificados no irmão, precisa de experimentar outra vez, não só para iluminar com outras imagens mais alguns neurónios em branco, mas também para tentar perceber que imagens ocorrerão ao insecto fumigado. Ambos partilham imagens, mas à distância de quantas dimensões? As imagens da criança são ópticas (o fumo do comboio), as da barata olfácticas (o fumo da planta queimada).
Quinta cena: plano aproximado de um carril, atravessado pelas rodas de um comboio. A deslocação do ar agita as plantas que crescem junto às tábuas. Entre a gravilha que rodeia o carril, beatas de cigarro.
Caso venham a tornar-se fumadoras, o menino arrisca consumir-se, como um doente viciado no veneno que lhe tira a saúde, enquanto a rapariga pretende consumar essa imagem que lhe dá acesso à outra dimensão, a dimensão que está do lado da experiência do outro (e esse outro pode ser um menino engasgado ou uma barata que muda de rota).
Tudo é fugaz, os insectos mais ainda. O sentimento de ausência não só define um saudoso coração amputado de companhia, como distrai e por fim faz esquecer uma esperançosa carreira entomológica. Quanto mais envenenada de substâncias tóxicas estiver a composição do cigarro, maior será a vontade do fumador em exterminar o insecto desconhecido. Por outro lado, se o tabaco for aromático e o papel de boa qualidade, o perfume que se expande no ar irá agradar ao desconhecido a cujas imagens ele quer aceder.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
a ilha do povo Dogonutee
Muito antes da febre ocidental pelas descobertas marítimas, época que viu os cartógrafos numa azáfama rectificativa comparável aos anúncios e desmentidos das publicações de actualidades, já os poetas e cronistas se deixavam influenciar pela vocação lendária dos marinheiros. Citando uma carta de navegação redigida por um argonauta em -500AT, o cronista espanhol Jeruaz Castrobaldo faz alusão a um arquipélago constituído por duas ilhas, localizado a Oeste dos Açores, no mesmo paralelo. A publicitação dos escritos referentes a esta descoberta foi escassa e desprovida de inspiração literária, razão pela qual não chegou a merecer uma entrada em nenhuma das edições do Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel e Gianni Gadalupi. Uma leitura comparada dalguns relatos, dispersos por várias regiões costeiras da Europa, leva-nos a concluir que durante o Inverno a ilha do norte ganhava um terço de terra ao mar, quase ficando ligada à sua ilha irmã, que ficava a Sudoeste. Durante o resto do ano, a ilha do sudoeste desenvolvia uma cauda de terra que subia pelo mar, desviava para Este e quase tocava na região mais a Norte da ilha sua irmã.
De acordo com as mnemónicas, ladainhas entre o canto e a narrativa de histórias ancestrais que passaram de geração em geração entre os descendentes do povo ameríndio Dogonutee, a ilha, a que chamavam “o suplício do homem dogonutee e a próxima vida”, era uma só, mas a água separava-a em duas parcelas de terra, para que os espíritos dos mortos não se deixassem confundir com os dos vivos. O corpos do morto era enviado dentro duma piroga a arder, para que o espírito se libertasse mais facilmente. Misturando-se com o fumo, chamado a “dança do céu”, os espíritos elevavam-se nos ares e ficavam a observar a vida deixada para trás.
Termos arcaicos, utilizados para diversos utensílios náuticos e domésticos, apontam hoje para uma permuta lexical entre os pescadores bascos e o povo Dogonutee. Sem que a história tivesse feito o relato, habitantes destes dois povos terão entrado em contacto. De acordo com a lenda basca, o nome da ilha foi abreviada para Dogonutia e, secundando a opinião dos Dogonutee, foram os primeiros europeus a afirmar que era uma só: as suas embarcações aportavam numa bacia que dava acesso a ambos os lados da ilha, para se proverem de água doce e algas marinhas (muito ricas em proteínas, cálcio e magnésio, nutrientes preciosos em viagens duradoiras).
Os navegadores portugueses não quiseram aproximar-se da Ilha da Denúncia (assim lhe chamaram, num abastardamento homofónico do nome basco; mas como também as inverdades acabam por encontrar um caminho em direcção aos factos, uma superstição entre as gentes do mar levou-os a crer que todos os que acostassem na ilha eram denunciados aos sicários de Adamastor). Para os cépticos tratava-se duma ilusão óptica, provocada por nuvens densas e baixas, o que pode ser explicado pela incineração de cadáveres levada a cabo pelos Dogonutee, sob o efeito da pressão atmosférica. À cautela, mantinham-se ao largo. Temiam que a ilha, a existir, estivesse inundada e desconfiavam da existência de baixios, arriscando naufragarem as suas embarcações de cascos fundos.
Os holandeses apelidaram-na de Dough Noote e os tripulantes das suas frotas mercantis, a acreditar nas breves menções que lhe fazem em alguns relatos, deram pouca importância a uma parcela de terra com uma parte inundada e outra coberta de ossos.
Desde que o arquipélago deixou de ser avistado e os relatos que dele se conheciam passaram a ser feitos citando os pouco fiáveis tripulantes de navios piratas, a sua localização foi posta em causa. A descoberta da América e o subsequente aumento do tráfego naval no Atlântico veio reforçar a tese de que não passava de uma pálida invenção. A sua existência acabou por ser definitivamente desacreditada e só a metáfora literária encontrou uma linha de crédito para entrar no arquipélago fantasma.
Deste lado do Atlântico, a fé de inspiração ameríndia também se encontra em perda. Podemos falar nas dimensões unificadas da separação, o que faz pensar num jogo de palavras, ou num péssimo uso das mesmas. Na costa do extremo-ocidente europeu um país demasiado velho para ter futuro e demasiado pequeno para ter passado resiste à desagregação. Esta duas improbabilidades foram resolvidas com um exercício histórico muito engenhoso, que consistiu numa abertura ao mundo pensando no país (enquanto futuro) e fechando-se no país pensando no mundo (enquanto passado). Esta assunção da identidade deve ser atribuída a uma manifestação desconcertante, a de que o mundo não é tão grande que não possa vir a ser descoberto (como foi, pelo país), nem o país tão pequeno para impedir que se torne desconhecido (como é, pelo mundo).
A disposição antropomórfica do território assemelha-se a um rosto de perfil (queixo mediterrânico, fronte atlântica, lábio leporino entre as fossas nasais do Tejo e a boca do Sado). De costas para a Europa e de frente para o mar, enforma a sua relação com o saber: a terra firme é ignorada, a terra móvel é invocada. É um país que na angústia de ser tomado pela Europa se lançou ao mar e quando se viu assoberbado pelo isolamento se voltou para a Europa. Entre as duas opções cresceram zonas de sombra: o contacto com a terra estranha, o conhecimento de gente desconhecida. O país, sob a forma de pessoas sem outra identidade que não a obsessão pelo país, ama-se a si mesmo, mas não se perdoa o estado de abandono a que votou o interesse pelo outro. A dívida amorosa foi o que reconheceu na Ilha da Denúncia.
Quem habita afinal estas ilhas, ou esta ilha? Com a sua dispersão pelo continente americano, o povo Dogonutee deixou de comunicar entre si as diversas parcelas de histórias ancestrais preservadas de pais para filhos, e não há primos, vizinhos ou conterrâneos para complementar a sua visão do passado numa perspectiva mais ampla. Poupou-nos assim a uma descoberta insuportável: a impossibilidade de viver no conhecimento da fé (que é a esperança no mistério, não o fim da viagem).
Os Dogonutee julgavam ser a célula de deus. Decorria da sua vontade libertá-lo. Ambicionavam destruir a cadeia em que a criação divina estava encerrada, mas as famílias deste povo foram separadas e deixaram de partilhar as diversas parcelas da sabedoria contida numa história completa. Resta-lhes aceder a uma célula menos vergonhosamente prisioneira numa próxima vida, o que deixa frustrado quem ainda não morreu. Durante a preparação, a sua crença anima-os a renovarem o sentido de liberdade contido no passado. Quando desaparecerem levarão consigo a divindade em que estavam contidos.
Quanto mais ténue e frágil é a demora da vida (os corpos que a encerram), menos densa é a trama da criação por libertar. Entre o ser que ambiciona viver mais anos do que os anos que pode contar e o ser que procura encurtar a duração dos seus trabalhos em vida, estamos à distância do vagar para a pressa. Os primeiros perdem-se no caminho, são alegres e distraídos. Os segundos, obstinados com a sua visão, só querem encontrar a chegada.
Os descendentes do povo dogonutee acreditam que a união com os mortos dará lugar a um mundo de novos povos. Devem agradecer à ignorância nunca terem desconfiado do que veio a acontecer ao mundo do seu povo. A ânsia de dispersar a criatividade (deus está em toda a parte) gerou as condições para a vinda de outros povos, identificados sob a fórmula poética “aquele que ensombra a minha solidão”.
A ilha dos mortos do povo Dogonutee regressa agora ao território da metáfora espelhada. Seguem-se imagens de formigas carregando mercadorias numa pressa desenfreada, feita de ultrapassagens e choques frontais. Escaravelhos contornam habilmente a encosta duma duna. Na superfície lisa do areal durante a maré baixa, pulgas saltam do interior de minúsculas crateras, onde pássaros de andar cómico enfiam os seus bicos pontiagudos, em busca de comida. Colados a formações rochosas, pólipos e cirrípedes (os perceves de que tu tanto gostas) balouçam ao ritmo da corrente. Pés descalços são molhados pelas ondas. A maré volta a encher. Chinelos são arrastados ao longo do areal. Uma onda faz uma revolução, desfazendo no seu interior uma multidão de partículas sólidas em partículas ainda mais específicas. A espuma invade a atmosfera.
Eis Jaime, amigo dos ameríndios. O seu corpo é-lhes entregue para o ritual fúnebre. Com ele, a ilha desaparece de vez, deixando em seu lugar uma antiga caderneta da colecção West (“a verdadeira história dos índios”). O rectângulo correspondente ao cromo 141, metade do díptico “Um grande orador”, está vazio. O “velho sonho” de reunificação, a que alude o capítulo correspondente da caderneta, fica por enquanto interrompido.
O que foi dado não é adquirido, o que foi adquirido perdeu-se. A reunião dar-se-á quando for recriada essa mesma realidade que resultou da perfeição do que foi vivido e que nenhum exílio deixa esquecer. É terrível aceitar que o aperfeiçoamento não extinguiu a separação, dividiu-a somente em parcelas menos dolorosas. Como um pano de croché que visto de muito perto, fio por fio, revela não estar ligado, antes desliza por nós e pontos, de acordo com formas geométricas que o compõem. Acaba sempre por restar uma ponta solta, amputada da sua continuação.
De acordo com as mnemónicas, ladainhas entre o canto e a narrativa de histórias ancestrais que passaram de geração em geração entre os descendentes do povo ameríndio Dogonutee, a ilha, a que chamavam “o suplício do homem dogonutee e a próxima vida”, era uma só, mas a água separava-a em duas parcelas de terra, para que os espíritos dos mortos não se deixassem confundir com os dos vivos. O corpos do morto era enviado dentro duma piroga a arder, para que o espírito se libertasse mais facilmente. Misturando-se com o fumo, chamado a “dança do céu”, os espíritos elevavam-se nos ares e ficavam a observar a vida deixada para trás.
Termos arcaicos, utilizados para diversos utensílios náuticos e domésticos, apontam hoje para uma permuta lexical entre os pescadores bascos e o povo Dogonutee. Sem que a história tivesse feito o relato, habitantes destes dois povos terão entrado em contacto. De acordo com a lenda basca, o nome da ilha foi abreviada para Dogonutia e, secundando a opinião dos Dogonutee, foram os primeiros europeus a afirmar que era uma só: as suas embarcações aportavam numa bacia que dava acesso a ambos os lados da ilha, para se proverem de água doce e algas marinhas (muito ricas em proteínas, cálcio e magnésio, nutrientes preciosos em viagens duradoiras).
Os navegadores portugueses não quiseram aproximar-se da Ilha da Denúncia (assim lhe chamaram, num abastardamento homofónico do nome basco; mas como também as inverdades acabam por encontrar um caminho em direcção aos factos, uma superstição entre as gentes do mar levou-os a crer que todos os que acostassem na ilha eram denunciados aos sicários de Adamastor). Para os cépticos tratava-se duma ilusão óptica, provocada por nuvens densas e baixas, o que pode ser explicado pela incineração de cadáveres levada a cabo pelos Dogonutee, sob o efeito da pressão atmosférica. À cautela, mantinham-se ao largo. Temiam que a ilha, a existir, estivesse inundada e desconfiavam da existência de baixios, arriscando naufragarem as suas embarcações de cascos fundos.
Os holandeses apelidaram-na de Dough Noote e os tripulantes das suas frotas mercantis, a acreditar nas breves menções que lhe fazem em alguns relatos, deram pouca importância a uma parcela de terra com uma parte inundada e outra coberta de ossos.
Desde que o arquipélago deixou de ser avistado e os relatos que dele se conheciam passaram a ser feitos citando os pouco fiáveis tripulantes de navios piratas, a sua localização foi posta em causa. A descoberta da América e o subsequente aumento do tráfego naval no Atlântico veio reforçar a tese de que não passava de uma pálida invenção. A sua existência acabou por ser definitivamente desacreditada e só a metáfora literária encontrou uma linha de crédito para entrar no arquipélago fantasma.
Deste lado do Atlântico, a fé de inspiração ameríndia também se encontra em perda. Podemos falar nas dimensões unificadas da separação, o que faz pensar num jogo de palavras, ou num péssimo uso das mesmas. Na costa do extremo-ocidente europeu um país demasiado velho para ter futuro e demasiado pequeno para ter passado resiste à desagregação. Esta duas improbabilidades foram resolvidas com um exercício histórico muito engenhoso, que consistiu numa abertura ao mundo pensando no país (enquanto futuro) e fechando-se no país pensando no mundo (enquanto passado). Esta assunção da identidade deve ser atribuída a uma manifestação desconcertante, a de que o mundo não é tão grande que não possa vir a ser descoberto (como foi, pelo país), nem o país tão pequeno para impedir que se torne desconhecido (como é, pelo mundo).
A disposição antropomórfica do território assemelha-se a um rosto de perfil (queixo mediterrânico, fronte atlântica, lábio leporino entre as fossas nasais do Tejo e a boca do Sado). De costas para a Europa e de frente para o mar, enforma a sua relação com o saber: a terra firme é ignorada, a terra móvel é invocada. É um país que na angústia de ser tomado pela Europa se lançou ao mar e quando se viu assoberbado pelo isolamento se voltou para a Europa. Entre as duas opções cresceram zonas de sombra: o contacto com a terra estranha, o conhecimento de gente desconhecida. O país, sob a forma de pessoas sem outra identidade que não a obsessão pelo país, ama-se a si mesmo, mas não se perdoa o estado de abandono a que votou o interesse pelo outro. A dívida amorosa foi o que reconheceu na Ilha da Denúncia.
Quem habita afinal estas ilhas, ou esta ilha? Com a sua dispersão pelo continente americano, o povo Dogonutee deixou de comunicar entre si as diversas parcelas de histórias ancestrais preservadas de pais para filhos, e não há primos, vizinhos ou conterrâneos para complementar a sua visão do passado numa perspectiva mais ampla. Poupou-nos assim a uma descoberta insuportável: a impossibilidade de viver no conhecimento da fé (que é a esperança no mistério, não o fim da viagem).
Os Dogonutee julgavam ser a célula de deus. Decorria da sua vontade libertá-lo. Ambicionavam destruir a cadeia em que a criação divina estava encerrada, mas as famílias deste povo foram separadas e deixaram de partilhar as diversas parcelas da sabedoria contida numa história completa. Resta-lhes aceder a uma célula menos vergonhosamente prisioneira numa próxima vida, o que deixa frustrado quem ainda não morreu. Durante a preparação, a sua crença anima-os a renovarem o sentido de liberdade contido no passado. Quando desaparecerem levarão consigo a divindade em que estavam contidos.
Quanto mais ténue e frágil é a demora da vida (os corpos que a encerram), menos densa é a trama da criação por libertar. Entre o ser que ambiciona viver mais anos do que os anos que pode contar e o ser que procura encurtar a duração dos seus trabalhos em vida, estamos à distância do vagar para a pressa. Os primeiros perdem-se no caminho, são alegres e distraídos. Os segundos, obstinados com a sua visão, só querem encontrar a chegada.
Os descendentes do povo dogonutee acreditam que a união com os mortos dará lugar a um mundo de novos povos. Devem agradecer à ignorância nunca terem desconfiado do que veio a acontecer ao mundo do seu povo. A ânsia de dispersar a criatividade (deus está em toda a parte) gerou as condições para a vinda de outros povos, identificados sob a fórmula poética “aquele que ensombra a minha solidão”.
A ilha dos mortos do povo Dogonutee regressa agora ao território da metáfora espelhada. Seguem-se imagens de formigas carregando mercadorias numa pressa desenfreada, feita de ultrapassagens e choques frontais. Escaravelhos contornam habilmente a encosta duma duna. Na superfície lisa do areal durante a maré baixa, pulgas saltam do interior de minúsculas crateras, onde pássaros de andar cómico enfiam os seus bicos pontiagudos, em busca de comida. Colados a formações rochosas, pólipos e cirrípedes (os perceves de que tu tanto gostas) balouçam ao ritmo da corrente. Pés descalços são molhados pelas ondas. A maré volta a encher. Chinelos são arrastados ao longo do areal. Uma onda faz uma revolução, desfazendo no seu interior uma multidão de partículas sólidas em partículas ainda mais específicas. A espuma invade a atmosfera.
Eis Jaime, amigo dos ameríndios. O seu corpo é-lhes entregue para o ritual fúnebre. Com ele, a ilha desaparece de vez, deixando em seu lugar uma antiga caderneta da colecção West (“a verdadeira história dos índios”). O rectângulo correspondente ao cromo 141, metade do díptico “Um grande orador”, está vazio. O “velho sonho” de reunificação, a que alude o capítulo correspondente da caderneta, fica por enquanto interrompido.
O que foi dado não é adquirido, o que foi adquirido perdeu-se. A reunião dar-se-á quando for recriada essa mesma realidade que resultou da perfeição do que foi vivido e que nenhum exílio deixa esquecer. É terrível aceitar que o aperfeiçoamento não extinguiu a separação, dividiu-a somente em parcelas menos dolorosas. Como um pano de croché que visto de muito perto, fio por fio, revela não estar ligado, antes desliza por nós e pontos, de acordo com formas geométricas que o compõem. Acaba sempre por restar uma ponta solta, amputada da sua continuação.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
mais perguntas para um concurso televisivo
Em Don’t talk (put your head on my shoulder), quarto tema do álbum Pet Sounds, de 1966, quando se escuta “come close, close your eyes and be still, don’t talk, take my hand and let me hear your heartbeat”, devemos entender uma alocução:
a. à namorada do cantor
b. ao fantasma do cantor
c. a quem o quiser ouvir
A primeira resposta está errada porque o cantor acabou entretanto com a namorada; a segunda resposta está errada porque sendo o cantor um fantasma está na sua natureza não entrar em cantigas com outros fantasmas e muito menos escutar-lhes o bater do coração; a terceira resposta também está errada porque independentemente de o quererem ou não ouvir, ninguém pode assegurar que o ouve de facto, já que se trata dum fantasma. Sendo assim, bloqueamos esta pergunta e passamos à praia, perdão, à pergunta referente ao quinto tema, que se chama
a. God only knows what I’d be without you
b. God only knows what I’ve been without you
c. God only knows what I am without you
Cada uma das opções é fiel ao sentimento da canção, em nenhum caso contradizendo as outras duas. Infelizmente, não podemos aceitar como correcta, nem a primeira resposta, nem a segunda, nem a terceira e a razão, embora maldosa, é simples: porque o tema chama-se God only knows (o que é uma depravada mentira, mas para o caso pouco importa) e porque se trata não da quinta, mas da oitava faixa do álbum. Passemos à terceira e última pergunta. No tema I just wasn’t made for these times, cujo refrão é “sometimes I feel very sad”, a que tempos se refere a canção (a, b ou c) e qual é o sujeito da inadequação a esses tempos (d, e ou f) ? Para acertar na resposta certa o concorrente tem nove opções, já que as respostas a, b, c devem ser conjugadas com as respostas d, e, f.
a. ao tempo da chuva, terrível para ir à praia
b. à época que então se vivia
c. aos períodos em que estava deprimido, sem conseguir suportá-los
d. o cantor que interpreta a canção
e. o compositor que fez a música
f. o letrista que escreveu a letra
As respostas d, e, f estão erradas porque o cantor, o compositor e o letrista, querendo ou não, gostando ou não, aceitando ou não, foram feitos por aquele tempo. As perguntas a, b, c estão correctas e podem combinar-se da seguinte maneira: ab, ac, bc. Infelizmente estas combinações vão contra as regras.
a. à namorada do cantor
b. ao fantasma do cantor
c. a quem o quiser ouvir
A primeira resposta está errada porque o cantor acabou entretanto com a namorada; a segunda resposta está errada porque sendo o cantor um fantasma está na sua natureza não entrar em cantigas com outros fantasmas e muito menos escutar-lhes o bater do coração; a terceira resposta também está errada porque independentemente de o quererem ou não ouvir, ninguém pode assegurar que o ouve de facto, já que se trata dum fantasma. Sendo assim, bloqueamos esta pergunta e passamos à praia, perdão, à pergunta referente ao quinto tema, que se chama
a. God only knows what I’d be without you
b. God only knows what I’ve been without you
c. God only knows what I am without you
Cada uma das opções é fiel ao sentimento da canção, em nenhum caso contradizendo as outras duas. Infelizmente, não podemos aceitar como correcta, nem a primeira resposta, nem a segunda, nem a terceira e a razão, embora maldosa, é simples: porque o tema chama-se God only knows (o que é uma depravada mentira, mas para o caso pouco importa) e porque se trata não da quinta, mas da oitava faixa do álbum. Passemos à terceira e última pergunta. No tema I just wasn’t made for these times, cujo refrão é “sometimes I feel very sad”, a que tempos se refere a canção (a, b ou c) e qual é o sujeito da inadequação a esses tempos (d, e ou f) ? Para acertar na resposta certa o concorrente tem nove opções, já que as respostas a, b, c devem ser conjugadas com as respostas d, e, f.
a. ao tempo da chuva, terrível para ir à praia
b. à época que então se vivia
c. aos períodos em que estava deprimido, sem conseguir suportá-los
d. o cantor que interpreta a canção
e. o compositor que fez a música
f. o letrista que escreveu a letra
As respostas d, e, f estão erradas porque o cantor, o compositor e o letrista, querendo ou não, gostando ou não, aceitando ou não, foram feitos por aquele tempo. As perguntas a, b, c estão correctas e podem combinar-se da seguinte maneira: ab, ac, bc. Infelizmente estas combinações vão contra as regras.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
perguntas para um concurso televisivo
No refrão da última faixa do seu primeiro álbum a solo, Stephen Malkmus canta:
a. you took me far to the long ride
b. you took me far to the long rhyme
c. you took me far to the long line.
Não me ocorre nada a não ser a vontade de escrever e como fazer outra coisa não estando contigo? Sou demasiado preguiçoso. Fossem as nossas vidas determinadas por sinais de alarme e em cada linha que avanço não deveria reconhecer em ti uma vocação, nem tão pouco o dom que me proporcionou recompensas fúteis, mas a incompreensível admoestação dum tempo de espera em que o esforço se reduz agora a alcançar paisagens distantes, gastas e depressa cansativas. Não estás aqui, de pouco serve completar-te. Uso os atributos do desenhador que à falta de modelo se agarra a pormenores que decompõem a miragem duma ausência desoladora. Não. A inutilidade mede-se em palavras. São tantas as que me ocorrem quando tardo em resolver o mistério que nos afasta. Os momentos vividos, mesmo havendo abundância de provas, testemunhos e até alguns registos materiais, servem para aumentar um sentimento de perda, de energia desperdiçada e que só foi atribuída para nela reconhecer o meu frustrado poder de decisão repleto de desejos fulgurantes e ocasiões oportunas, mas desprovido de capacidade para agir. Reagir. Um telefonema, uma caminhada, um encontro para mais tarde, um frente-a-frente entre um aparelho de televisão e um sofá a sonhar com uma vida. Uma ilusão de carícias, preciosismos afectuosos, afeições inesperadas, uma comoção presa por algemas, afinidades apanhadas em flagrante, afectações dum espírito caprichoso. Devaneio, dissipação, aparas espiraladas de lápis e finíssimos rolos de borracha gasta. A luz eléctrica consome o que resta da noite consumada, o aquecimento, para já, completa um quadro de conforto de que tu não fazes parte e de que eu, a esta hora, não posso esquivar-me. A resposta certa torna-se impossível porque:
a. não corro para ti, nem escuto os meus passos apressados
b. não rimamos juntos e não ouço a tua voz
d. a linha quebrou-se e a próxima folha está em branco
a. you took me far to the long ride
b. you took me far to the long rhyme
c. you took me far to the long line.
Não me ocorre nada a não ser a vontade de escrever e como fazer outra coisa não estando contigo? Sou demasiado preguiçoso. Fossem as nossas vidas determinadas por sinais de alarme e em cada linha que avanço não deveria reconhecer em ti uma vocação, nem tão pouco o dom que me proporcionou recompensas fúteis, mas a incompreensível admoestação dum tempo de espera em que o esforço se reduz agora a alcançar paisagens distantes, gastas e depressa cansativas. Não estás aqui, de pouco serve completar-te. Uso os atributos do desenhador que à falta de modelo se agarra a pormenores que decompõem a miragem duma ausência desoladora. Não. A inutilidade mede-se em palavras. São tantas as que me ocorrem quando tardo em resolver o mistério que nos afasta. Os momentos vividos, mesmo havendo abundância de provas, testemunhos e até alguns registos materiais, servem para aumentar um sentimento de perda, de energia desperdiçada e que só foi atribuída para nela reconhecer o meu frustrado poder de decisão repleto de desejos fulgurantes e ocasiões oportunas, mas desprovido de capacidade para agir. Reagir. Um telefonema, uma caminhada, um encontro para mais tarde, um frente-a-frente entre um aparelho de televisão e um sofá a sonhar com uma vida. Uma ilusão de carícias, preciosismos afectuosos, afeições inesperadas, uma comoção presa por algemas, afinidades apanhadas em flagrante, afectações dum espírito caprichoso. Devaneio, dissipação, aparas espiraladas de lápis e finíssimos rolos de borracha gasta. A luz eléctrica consome o que resta da noite consumada, o aquecimento, para já, completa um quadro de conforto de que tu não fazes parte e de que eu, a esta hora, não posso esquivar-me. A resposta certa torna-se impossível porque:
a. não corro para ti, nem escuto os meus passos apressados
b. não rimamos juntos e não ouço a tua voz
d. a linha quebrou-se e a próxima folha está em branco
domingo, 13 de fevereiro de 2011
o primeiro dos homens
Depois de passar a noite anterior a confraternizar com os alcoólicos do bairro no Ó Arcaz, Jaime Roque anunciou na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, que tinha feito conhecimento com “o primeiro dos homens”. “Não tem umbigo”, perguntou-lhe a irmã, enquanto punha na torradeira uma fatia de pão com um buraco ao meio. “Tinha que idade”, perguntou a mãe, que contava no calendário o número de dias que faltavam para lhe chegar a menstruação. “Como é que se chamava”, perguntou-lhe o pai, enquanto vertia o café para a caneca de mestre Vaquinhas. “Não sei”, respondeu. “A primeira coisa que lhe ouvi dizer foi já não há homens, quando pedi meio copo de cerveja. Depois de esvaziar o copo apeteceu-me beber mais e ele serviu-me o que restava na garrafa. O trabalho dele é registar a entrada de medicamentos numa espécie de armazém distribuidor e depois receber os pedidos de encomenda das farmácias. Disse que ganha muito bem, que é um excelente emprego, só trabalha seis por dia e ganha 40 contos nos dias de folga em que fica de serviço. Contou-me que os miúdos são os principais consumidores de viagra. E contou uma anedota de que ninguém se riu. E também contou que comia camarão todos os dias num bar de alterne e depois deixou de lá ir e já ninguém comeu o camarão e o dono levou um enxerto e sem ele aquilo virou um perigo. E dizia ‘isso para mim é cona’, quando queria mostrar-se repugnado. E prontificou-se a arranjar remédios a preços de produtor. E usava um tubo com gás mostarda dentro. E passou o tempo a tentar vangloriar-se de cometer actos de corrupção. E depois foi vender comprimidos para as discotecas. Já não há homens, disse antes de partir. Vou escrever uma canção sobre ele. Vai chamar-se “O Primeiro dos Homens”. “Já tens o refrão, perguntou-lhe o pai, enquanto demolhava um papo-seco no café com leite. “Só alguns versos”, respondeu Jaime Roque, que disputava o lava-loiça com a mãe e levou uma ancada que o fez deixar cair a maçã, ainda por lavar.
É quase igual a toda a gente
vende remédios a quem fica doente
trata da saúde a qualquer irmão
fala de ser corrupto com satisfação
conta anedotas sem nenhuma piada
tem os olhos abertos e não vê nada
Grande punkalhada”, comentou a irmã, que entrou na cozinha, tirou um iogurte do frigorífico e voltou a sair. “Adequa-se à personagem”, disse esperançoso Jaime Roque para o pai. “Pois, como canção também não vale nada.”
É quase igual a toda a gente
vende remédios a quem fica doente
trata da saúde a qualquer irmão
fala de ser corrupto com satisfação
conta anedotas sem nenhuma piada
tem os olhos abertos e não vê nada
Grande punkalhada”, comentou a irmã, que entrou na cozinha, tirou um iogurte do frigorífico e voltou a sair. “Adequa-se à personagem”, disse esperançoso Jaime Roque para o pai. “Pois, como canção também não vale nada.”
sábado, 12 de fevereiro de 2011
até ao canil
Farrusco III, orgulhoso cão de linhagem, estava cansado. Não retinha líquidos nem sólidos, desperdiçava-os em evacuações domésticas que o deixavam destroçado, confuso, surpreendido e atrozmente envergonhado. Refugiava-se por trás de cortinas transparentes, sem força para uivar nem para encontrar um esconderijo à medida da sua aristocrática altivez. Era um fino animal de caça que nunca ladrava depois de apanhar a presa. Brincava com as crianças e fazia trinta por uma linha com os adultos. Mandava-os ao chão numa inesperada mudança de direcção, ameaçava um ataque frontal com súbita abordagem lateral, bebericava do copo a quem adormecia na matrona, surripiava o comando depois de mudar de canal, lambia o pudim acabado de sair do fogão, deitava-se em camas acabadas de fazer, esfregava-se num lençol de banho durante a queda do pêlo, engolia o último parafuso duma mesa desmontável, comia o botão de rosa oferecido por um galante à moça solteira lá de casa, desenhava com as patas enlameadas, no átrio acabado de lavar, os passos duma dança só por ele conhecida. Foi também um heróico salvador de crianças temerárias e velhinhos temerosos. Não se apoquentava que os gatos, de barriga cheia, lhe entornassem a gamela. Aceitava o castigo sem pedir festas ao castigador. Perseguia insectos, répteis e pássaros sem procurar recompensa. Cachorro, escondia-se porque era vadio e não abdicava de ser livre. Adulto, escondia-se por malandragem e para assegurar o afecto dos donos. Foi um companheiro em horas de solidão e na hora das festas escapava-se aos convidados que o utilizavam como intermediário para fazerem festas aos donos de casa. A fornicar não descriminou raça ou sexo. Como tantos, fazia buracos no quintal, mas quem antes dele soube ordená-los por talhões? Depois de envelhecer escondia-se para evitar ser esquecido e por fim mal conseguia mexer-se. Não suportava a piedade. Provavelmente exageramos, mas somente para compensar o pudor com que entrou para o banco de trás do carro que o levou ao canil. Sem uma teimosia de última hora, sem desconfiança, sem um olhar pela janela. Jaime em lágrimas sentado a seu lado e Farrusco III num último gesto galhardo, boca fechada e pálpebras descaídas, à janela a sentir o vento nas orelhas. Jaime a tirar-lhe a coleira e Farrusco III numa vénia de rendição. Virou-se para trás antes de franquear a porta e continuou a marcha num esforço culminante. Na viagem de regresso do canil, o patriarca Aníbal São Roque (para quem o adágio “um homem nunca chora” não admite excepções) pediu duas vezes ao neto para não chorar. Antes de pedir uma terceira vez, a voz escapou-se da garganta e só teve tempo de carregar no travão e sair porta fora. Reapareceu cinco minutos depois, com uma expressão militar estudada e uns olhos vidrados.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
a pílula
Por ocasião do seu aniversário, em que celebrou 18 anos bem feitinhos, Joana Silvestre reivindicou junto da alteridade paternal o direito a tomar a pílula. Após beberem um copo de água (sem efeito), os pais serviram-se do remédio mais alcoólico que encontraram na garrafeira e retiraram-se para a varanda. Conciliaram, dirigiram-se ao escriptorio de Mestre Vaquinhas, concertaram no texto a redigir e entregaram à interessada o decreto, devidamente assinado e carimbado: direito concedido. Joana Silvestre não ficou satisfeita. Era uma ofensa para o seu estatuto de cidadã maior de idade receber permissão para exercer um direito que lhe era reconhecido por lei. Do que ela precisava era do financiamento para instalar um chip-pílula. Não podia arriscar um dia de esquecimento, tão pouco estava disposta a apoquentar-se com mais uma responsabilidade diária. O chip-pílula é introduzido na camada subcutânea do antebraço e já está, oferece garantia por três anos. Os pais voltaram a reunir-se e regressaram à cozinha com duas contrapropostas. Vera São Roque ofereceu-lhe a sua colecção de preservativos com sabor frutado e um lubrificante. Roberto de Deus Silvestre, por seu lado, presenteou-a com um manual técnico de sexo tântrico, com uma nota introdutória da sua autoria acerca da interrupção do coito, truques para evitar ejaculações e agir de forma célere, acrescentando ao generoso cabaz anticoncepcional uma medalha de ouro com a efígie da virgem, para dar sorte. Joana Silvestre foi aos arames. Levantou-se da cadeira da oposição, acusou o governo doméstico de manobras de diversão e ameaçou terminar a fase de tréguas, passando ao acto sem mais aquela. Jaime Roque, que tinha passado a sessão de debate a reflectir sobre a melhor estratégia para retirar dividendos de um eventual precedente relativo à fazenda doméstica, gritou apoiado e coligou-se com a irmã. Também ele pretendia um chip, apesar de não estar certo da sua existência no mercado. Advogava o princípio de paridade: no seu aniversário pretendia um chip com a enciclopédia britânica e um dicionário de mandarim, de preferência acoplado no pénis para alargar o tamanho e torná-lo mais competitivo. Vera São Roque, num acesso de espontaneidade, precipitou-se com um “vão trabalhar malandros”. Mais sensível ao espírito de independência dos filhos, que compreensivelmente preferiam a dependência de subsídios a fundo perdido a terem de subjugar-se à exploração do mercado de trabalho, Roberto de Deus Silvestre desencantou do bolso traseiro das calças uma nota de cinco euros e mandou-os comprar gelados.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
dia da mãe
Atacado por uma febre que lhe devorou em vinte e quatro horas as mil e quinhentas gramas que tinha ganho no campo, em casa dos avós maternos, o convalescente Jaime Roque passou a manhã deitado na cama, recusando-se a comer e a lavar-se das toxinas malcheirosas transpiradas durante a noite. Às três da tarde abandonou o quarto. Sentou-se na varanda, a mordiscar rodelas de pepino e fatias de pão barradas com manteiga e marmelada, e a observar numa atenção hipnótica as flores que tinham rebentado nos vasos. Sem dizer ai, refugiou-se na casa de banho, forçando o esquentador a produzir meia hora de água quente. Encavalitada no braço do sofá, Joana explicava à mãe o presente que lhe tinha construído (um insectário de formigas que tinham de atravessar um labirinto para chegar à comida). A mãe deu-lhe um beijo, levantou-se e pendurou o insectário na parede ao lado da porta da varanda, onde se encontrava um camarão sem uso, desde que se partira o espelho. Jaime reentrou na sala em cuecas e sentou-se à frente da irmã. A mãe ajoelhou-se aos pés dele e segurou-lhe nas mãos, assentes sobre as pernas magras e compridas, onde começava a despontar uma fina penugem, que o último raiar da tarde acobreava. Jaime levantou-se e trocou de lugar com a mãe, deu dois passos atrás e o ombro nu ficou recortado num feixe de luz que entrava pela porta da varanda. Fixando um ponto algures no corredor em frente, declamou para a assistência o poema em sua homenagem.
A minha linda mãe
Polvilhada do pólen
Que o meu pai largou
Deu-me à luz no Alcalém
Através de pétalas
Que ninguém contou
[pausa; retomar de fôlego]
E se no mundo houver mães
Como as flores polenizadas
Que sejam os filhos
A trazer o amor
E não os homens
Por quem foram desfolhadas
Impressionada pela eloquência do irmão, Joana perguntou o que queria dizer desfolhadas. Não se tendo apercebido do décimo verso, o pai duvidava da possibilidade científica dos filhos desfolharem as mães. Vera tinha o rosto lavado em lágrimas. Quando Jaime se levantou do sofá, apercebeu-se de uma nódoa negra que o filho tinha junto às virilhas (provocada pelo quadro da bicicleta do avô, que era alta de mais para ele: como não chegava com os pés ao chão, uma travagem brusca equivalia a escorregar do selim). Enquanto ele avançava no poema, numa trepidante voz infantil, sem entoação nem equilíbrio, a ela ocorriam-lhe os caminhos inseguros que ele tinha escolhido, o esforço das suas pernas miúdas a pedalarem e a tenacidade com que lhe recitava o poema, sem um único queixume.
A minha linda mãe
Polvilhada do pólen
Que o meu pai largou
Deu-me à luz no Alcalém
Através de pétalas
Que ninguém contou
[pausa; retomar de fôlego]
E se no mundo houver mães
Como as flores polenizadas
Que sejam os filhos
A trazer o amor
E não os homens
Por quem foram desfolhadas
Impressionada pela eloquência do irmão, Joana perguntou o que queria dizer desfolhadas. Não se tendo apercebido do décimo verso, o pai duvidava da possibilidade científica dos filhos desfolharem as mães. Vera tinha o rosto lavado em lágrimas. Quando Jaime se levantou do sofá, apercebeu-se de uma nódoa negra que o filho tinha junto às virilhas (provocada pelo quadro da bicicleta do avô, que era alta de mais para ele: como não chegava com os pés ao chão, uma travagem brusca equivalia a escorregar do selim). Enquanto ele avançava no poema, numa trepidante voz infantil, sem entoação nem equilíbrio, a ela ocorriam-lhe os caminhos inseguros que ele tinha escolhido, o esforço das suas pernas miúdas a pedalarem e a tenacidade com que lhe recitava o poema, sem um único queixume.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
pequeno slam
A final do torneio de ténis de Calem terminou ontem no court À-Sombra-da-Ameixoeira-das-Traseiras sem vencedor. O jogo entre João Roque e Joana Silvestre foi interrompido quando se registava um empate (parciais de 7-5 e 4-6) e a taça destinada ao vencedor, uma magnífica peça em vidro de fabrico industrial, foi utilizada pelo árbitro para emborrachar-se.
A interpretação das leis do jogo foi o motivo de discórdia. Joana Silvestre, vestindo uma saia verde-alface e uma camisola branca com buracos nos ombros e nas costas, não concordou com a perda de um ponto em que mandou a bola fora, uma vez que o adversário estava em posição de jogá-la (com este ponto Jaime Roque quebrou o serviço de Joana Silvestre). Jogando com o equipamento oficial do Atlético de Calem (camisola às listas amarelas e azuis, peúgo vermelho), Jaime Roque não gostou de ver validada uma bola de serviço de João Silvestre que pisou a marca de fundo. Segundo ele, as bolas devem ser batidas no interior do court e não nos limites (com este arriscadíssimo ás, ainda no primeiro set, João Silvestre reduziu para 5-6).
O conflito azedou no início da jogada seguinte. Jaime Roque serviu para fora pela segunda vez, mas João Silvestre bateu na bola, para evitar que saísse do court. Jaime Roque protestou a perda do ponto, acrescentando que a ausência de apanha-bolas, e a perda de tempo em andar à procura delas, não era motivo suficiente para quebrar as regras. O árbitro registou a sua queixa, mas deu o ponto a João Silvestre. Em retaliação, Jaime Roque serviu ostensivamente para fora do court. Embora lhe restasse uma segunda bola no bolso dos calções, para a segunda tentativa de serviço, o árbitro obrigou-o a ir à procura da primeira. Usando de cautela, Jaime Roque voltou a servir, mas a adversária subiu à rede e acertou-lhe na cabeça. O árbitro marcou 0-30 a favor de João Silvestre e ignorou a desculpa sem fundamento de Jaime Roque, que disse ter dado uma cabeçada para impedir a bola de perder-se nas silvas. O magnífico amorti com que João Silvestre quebrou a terceira bola de serviço ao adversário teve no entanto um efeito inesperado no desenlace do ponto.
A graciosidade com que a tenista chegou à bola (uma enérgica passada que lhe levantou a saia acima da coxa), revelou-lhe a cor das cuecas (um rosa velho, por sinal bem bonito). Numa demonstração de mau desportivismo, Jaime Roque caiu ao chão, com uma crise de riso. O árbitro exigiu que o tenista retomasse o lugar junto à linha de fundo, mas não conseguiu evitar um sorriso comprometedor, ao reparar na presença de espírito com que João Silvestre, antes de baixar a saia, acertou o elástico das cuecas. A tenista aproximou-se do árbitro por causa do atraso que estava a ser provocado pelo adversário, mas a veemência do seu protesto, a fúria nos seus olhos escuros e a boca ternurenta, humedecida por uma língua reguila, causaram um tal fascínio no árbitro que este não conseguiu evitar aproximar-se do seu rosto e arrancar-lhe dois fios de cabelo presos à pálpebra do olho esquerdo.
As consequências deste acto irreflectido foram dramáticas. Jaime Roque alegou perda de confiança no árbitro e João Silvestre acusou o juiz de “paternalismo machista”, tentativa de “assédio sensual”, “contacto corporal de facto”, “falta de decência” e “abuso de confiança” (ufa). Os protestos tiveram como resultado a perda de concentração. João Silvestre desperdiçou três break-points e ofereceu o primeiro set ao adversário, perdendo por 5-7.
No segundo set, Jaime Roque chegou facilmente a 4-0. O primeiro jogo, com Silvestre a servir, demonstrou bem a sua desconcentração: oito bolas de serviço mandadas para fora. Chegados ao quinto jogo, Jaime Roque abriu com três ases e preparava-se para fechar o quinto ponto quando se aproximou do court um dueto de gandulas acompanhado de uma colega de João Silvestre. Estava destinado que também Jaime Roque haveria de passar por um teste de confiança. Os assistentes do sexo masculino reprovaram a disputa entre atletas de sexo diferente e o árbitro não conseguiu evitar os risos, os dedos apontados e os gritos de incitamento. Jaime Roque tentou fazer mais um ás e desperdiçou seis bolas de serviço, permitindo que Silvestre empatasse o jogo sem precisar de mexer-se. A sétima bola entrou no quadrado de serviço, Joana respondeu com displicência, a bola tocou na rede e Jaime Roque chegou atrasado. Vantagem para Silvestre. Jaime Roque voltou a servir com vigor e Joana mal teve tempo de encostar a raquete. A bola descreveu um arco e foi cair mesmo ao canto da linha, quando Jaime Roque se aproximava da rede: jogo para Silvestre, protesto do adversário.
Com o set em 4-4, depois duma espectacular recuperação de Silvestre, Jaime Roque continuou a insistir em serviços com efeito (com o trio da audiência a gritar “fora!”). A perder por 0-40, a sétima bola de serviço entrou, Silvestre respondeu sem complicar e Jaime escorregou (risos na bancada). Vermelho de cólera, fez um serviço válido, Silvestre devolveu a bola e Jaime voltou a tropeçar: uma das sapatilhas tinha os cordões desatados. 4-5.
Silvestre aproveitou o intervalo para ir conversar com a colega (Jaime Roque tapou a toalha com a cabeça para limpar as lágrimas – perdão – o suor). Rodeando a tenista, os dois gandulas calaram-se, o mais alto olhou para o cúmplice e este afastou a franja da testa num movimento de pescoço que lhe terá parecido muito casual e que João ignorou, entretida que estava a arrancar com a ponta da raquete uma pedra entalada na sola do ténis). Com um sorriso, que a transpiração fez brilhar em cintilações rosadas nas bochechas, despediu-se da colega e acenou um “tchau” aos gandulas. Os três foram embora e o jogo recomeçou.
Joana Silvestre fez 30-0 em duas subidas à rede e conseguiu ainda um ás inexplicável, já que Jaime Roque estava na linha da bola. Queixando-se dum cisco no olho, Jaime Roque pediu a repetição da jogada. Pedido recusado. João Silvestre serviu uma última vez e o adversário deu dois passos tão rápidos que chegou ao lugar antes da bola. Com tempo para preparar o tiro, Jaime Roque disparou com tanta força ao ponto de dar meia volta e cair sobre a perna. A irmã ficou imóvel, com a ponta da raquete a tocar-lhe na canela. A bola saiu para fora pela linha lateral. “Não vale, aleijei-me”, rosnou Jaime Roque, agarrado ao joelho. “Jogo. 6-4 favorável a Joana Silvestre, 1-1, vai-te lixar”, respondeu o árbitro, que desceu da cadeira e tirou o chapéu de sol, antes de acabar o vinho que sobrava na taça. “Estou ferido, o que é que pensas?” “Levanta-te e vai buscar a caixa dos medicamentos.” “Vou eu”, prontificou-se João Silvestre. “Sim, vai tu”, concordou o árbitro, “Brinca com ele, tu és a paramédica e ele o paradoente. “E tu és o paraquê?”
A interpretação das leis do jogo foi o motivo de discórdia. Joana Silvestre, vestindo uma saia verde-alface e uma camisola branca com buracos nos ombros e nas costas, não concordou com a perda de um ponto em que mandou a bola fora, uma vez que o adversário estava em posição de jogá-la (com este ponto Jaime Roque quebrou o serviço de Joana Silvestre). Jogando com o equipamento oficial do Atlético de Calem (camisola às listas amarelas e azuis, peúgo vermelho), Jaime Roque não gostou de ver validada uma bola de serviço de João Silvestre que pisou a marca de fundo. Segundo ele, as bolas devem ser batidas no interior do court e não nos limites (com este arriscadíssimo ás, ainda no primeiro set, João Silvestre reduziu para 5-6).
O conflito azedou no início da jogada seguinte. Jaime Roque serviu para fora pela segunda vez, mas João Silvestre bateu na bola, para evitar que saísse do court. Jaime Roque protestou a perda do ponto, acrescentando que a ausência de apanha-bolas, e a perda de tempo em andar à procura delas, não era motivo suficiente para quebrar as regras. O árbitro registou a sua queixa, mas deu o ponto a João Silvestre. Em retaliação, Jaime Roque serviu ostensivamente para fora do court. Embora lhe restasse uma segunda bola no bolso dos calções, para a segunda tentativa de serviço, o árbitro obrigou-o a ir à procura da primeira. Usando de cautela, Jaime Roque voltou a servir, mas a adversária subiu à rede e acertou-lhe na cabeça. O árbitro marcou 0-30 a favor de João Silvestre e ignorou a desculpa sem fundamento de Jaime Roque, que disse ter dado uma cabeçada para impedir a bola de perder-se nas silvas. O magnífico amorti com que João Silvestre quebrou a terceira bola de serviço ao adversário teve no entanto um efeito inesperado no desenlace do ponto.
A graciosidade com que a tenista chegou à bola (uma enérgica passada que lhe levantou a saia acima da coxa), revelou-lhe a cor das cuecas (um rosa velho, por sinal bem bonito). Numa demonstração de mau desportivismo, Jaime Roque caiu ao chão, com uma crise de riso. O árbitro exigiu que o tenista retomasse o lugar junto à linha de fundo, mas não conseguiu evitar um sorriso comprometedor, ao reparar na presença de espírito com que João Silvestre, antes de baixar a saia, acertou o elástico das cuecas. A tenista aproximou-se do árbitro por causa do atraso que estava a ser provocado pelo adversário, mas a veemência do seu protesto, a fúria nos seus olhos escuros e a boca ternurenta, humedecida por uma língua reguila, causaram um tal fascínio no árbitro que este não conseguiu evitar aproximar-se do seu rosto e arrancar-lhe dois fios de cabelo presos à pálpebra do olho esquerdo.
As consequências deste acto irreflectido foram dramáticas. Jaime Roque alegou perda de confiança no árbitro e João Silvestre acusou o juiz de “paternalismo machista”, tentativa de “assédio sensual”, “contacto corporal de facto”, “falta de decência” e “abuso de confiança” (ufa). Os protestos tiveram como resultado a perda de concentração. João Silvestre desperdiçou três break-points e ofereceu o primeiro set ao adversário, perdendo por 5-7.
No segundo set, Jaime Roque chegou facilmente a 4-0. O primeiro jogo, com Silvestre a servir, demonstrou bem a sua desconcentração: oito bolas de serviço mandadas para fora. Chegados ao quinto jogo, Jaime Roque abriu com três ases e preparava-se para fechar o quinto ponto quando se aproximou do court um dueto de gandulas acompanhado de uma colega de João Silvestre. Estava destinado que também Jaime Roque haveria de passar por um teste de confiança. Os assistentes do sexo masculino reprovaram a disputa entre atletas de sexo diferente e o árbitro não conseguiu evitar os risos, os dedos apontados e os gritos de incitamento. Jaime Roque tentou fazer mais um ás e desperdiçou seis bolas de serviço, permitindo que Silvestre empatasse o jogo sem precisar de mexer-se. A sétima bola entrou no quadrado de serviço, Joana respondeu com displicência, a bola tocou na rede e Jaime Roque chegou atrasado. Vantagem para Silvestre. Jaime Roque voltou a servir com vigor e Joana mal teve tempo de encostar a raquete. A bola descreveu um arco e foi cair mesmo ao canto da linha, quando Jaime Roque se aproximava da rede: jogo para Silvestre, protesto do adversário.
Com o set em 4-4, depois duma espectacular recuperação de Silvestre, Jaime Roque continuou a insistir em serviços com efeito (com o trio da audiência a gritar “fora!”). A perder por 0-40, a sétima bola de serviço entrou, Silvestre respondeu sem complicar e Jaime escorregou (risos na bancada). Vermelho de cólera, fez um serviço válido, Silvestre devolveu a bola e Jaime voltou a tropeçar: uma das sapatilhas tinha os cordões desatados. 4-5.
Silvestre aproveitou o intervalo para ir conversar com a colega (Jaime Roque tapou a toalha com a cabeça para limpar as lágrimas – perdão – o suor). Rodeando a tenista, os dois gandulas calaram-se, o mais alto olhou para o cúmplice e este afastou a franja da testa num movimento de pescoço que lhe terá parecido muito casual e que João ignorou, entretida que estava a arrancar com a ponta da raquete uma pedra entalada na sola do ténis). Com um sorriso, que a transpiração fez brilhar em cintilações rosadas nas bochechas, despediu-se da colega e acenou um “tchau” aos gandulas. Os três foram embora e o jogo recomeçou.
Joana Silvestre fez 30-0 em duas subidas à rede e conseguiu ainda um ás inexplicável, já que Jaime Roque estava na linha da bola. Queixando-se dum cisco no olho, Jaime Roque pediu a repetição da jogada. Pedido recusado. João Silvestre serviu uma última vez e o adversário deu dois passos tão rápidos que chegou ao lugar antes da bola. Com tempo para preparar o tiro, Jaime Roque disparou com tanta força ao ponto de dar meia volta e cair sobre a perna. A irmã ficou imóvel, com a ponta da raquete a tocar-lhe na canela. A bola saiu para fora pela linha lateral. “Não vale, aleijei-me”, rosnou Jaime Roque, agarrado ao joelho. “Jogo. 6-4 favorável a Joana Silvestre, 1-1, vai-te lixar”, respondeu o árbitro, que desceu da cadeira e tirou o chapéu de sol, antes de acabar o vinho que sobrava na taça. “Estou ferido, o que é que pensas?” “Levanta-te e vai buscar a caixa dos medicamentos.” “Vou eu”, prontificou-se João Silvestre. “Sim, vai tu”, concordou o árbitro, “Brinca com ele, tu és a paramédica e ele o paradoente. “E tu és o paraquê?”
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
msg: primeiras imagens
O vaivém Bañeira I, a bordo do qual se encontram os astronautas nudistas Jaime e Joana Oque, emitiu hoje as primeiras imagens do espaço, na órbita da terra. Com a ajuda do comandado Jaime Oque, cujos olhos serviram de espelho reflector, a comandante da Missão Sem Grão captou imagens com grande nitidez de anti-partículas que copiam acontecimentos em terra. Embora estas anti-partículas se dispersem umas das outras ao entrarem no espaço orbital, a proximidade a que o vaivém se encontra da fronteira com a atmosfera permitiu a Joana Oque reproduzir na sua câmara Ma’Laika uma série de ocorrências que, depois de terem lugar em terra, se anti-materializam. Com a ajuda de uma lente convexa, que permite ampliações em grande escala, Joana Oque fixou a câmara no globo ocular esquerdo do comandado Jaime Oque, imobilizado em frente a uma escotilha. As primeiras imagens recebidas pela agencia Aeiou, que o Canal Neo-Espacial transmite em primeira mão, são por enquanto de curta duração (entre 4 e 9 segundos por cada plano). Tal deve-se à grande dificuldade do comandado Jaime Oque em manter a íris do olho fora do campo de visão, ou seja, por trás da pálpebra, mantendo-a ao mesmo tempo aberta. “Tentámos prender as pálpebras com uns arames”, afirmou a comandante Joana Oque, “mas os vasos sanguíneos do olho ficam irritados, o saco lacrimal lubrifica o olho em excesso e a imagem desfoca.” Para além das interferências na imagem causadas por uma finíssima trama escarlate de vasos sanguíneos, o segundo problema prende-se com a natureza das imagens em si. Constituída por minúsculas antipartículas aglomeradas, cada uma destas imagens aparenta estar em movimento, uma vez que as antipartículas saltitam e trocam de posição com as antipartículas vizinhas, provocando uma indefinição nas figuras, assim como um constante efeito de sístole e diástole. “Como se estivessem a respirar”, comentou ao vivo Joana Oque, espantada pela forma como as imagens “aumentam e diminuem de tamanho”. Embora a qualidade técnica da transmissão seja óptima, da mesma forma que é surpreendente o método de captação encontrado, a comandante mostrou-se desiludida. “Outra vez missão com grão”, desabafou. As dificuldades encontradas não impedem que se observe, entre as imagens transmitidas, o braço de uma criança a brincar com um pato de borracha à tona da água entre colinas de espuma, um guarda-chuva estampado numa toalha pendurada no cabide de uma porta, um pente que desliza por uma mecha de cabelos em alvoroço, uma criança de expressão indignada a cruzar os braços e uma colher de sopa a voar em direcção a uma boca com os lábios teimosamente (assim parece) fechados.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
missão sem grão
A AEIOU (Agência Espacial dos Irmãos ‘Oque Universo) lançou ontem ao final da tarde, antes do jantar, o vaivém espacial Bañeira I, levando a bordo os astronautas nudistas Joana Oque e Jaime Oque. A descolagem, segundo os operadores técnicos na ponte de controlo, decorreu sem problemas de maior, havendo apenas a notar, à saída da atmosfera, uma nuvem de espuma que o vaivém perfurou, provocando um aguaceiro nas regiões limítrofes da plataforma de lançamento. Depois deste incidente, que por instantes causou alguma ansiedade na ponte de controlo (ninguém trouxera guarda-chuva), os astronautas nudistas tomaram a sua primeira refeição a bordo, já na órbita do planeta, seguindo-se uma curta inspecção do equipamento e algumas horas de repouso. O objectivo principal da missão é captar em directo, para os receptores da terra, imagens do espaço em alta qualidade. A produção de imagens da NASA, que nas últimas décadas teve o império deste importante mercado, é uma vergonha para a classe, afirmou a comandante Joana Oque. “E tem a cumplicidade dos órgãos de informação”, acrescentou, enquanto despia as cuecas e baixava o tampo de um dispositivo de descarga e evacuação que visa recolher os despojos orgânicos dos tripulantes, para futuras análises comparativas. Responsabilizando igualmente a falta de exigência do público consumidor deste tipo de imagens (“cientistas como nós”), Joana Oque disse ainda que os orçamentos “são astronómicos” e as imagens têm a qualidade de um vídeo caseiro. “Excesso de grão, cores empasteladas, desfocagem permanente, enquadramentos desenquadrados. E o pior é a acção: movimentos lentos, corpos a levitar. Uma banalidade de bradar aos céus. É o mesmo que pagar por um filme de grande produção sobre as descobertas marítimas e depois ir à Costa da Caparica filmar banhistas a boiarem no mar.” Por seu lado, Jaime Oque, comandado, tem a seu cargo o desempenho de acções que representem uma relação dinâmica com o espaço. Astronautas a tomarem comprimidos à refeição, a caminharem de cabeça para baixo, a mudarem um parafuso no casco do vaivém, são acções que não o deixam impressionado. “Não é difícil fazer melhor.”
a capa e o busto
Operado de fresco a uma amigdalite que o deixou provisoriamente sem pio (um descanso), Jaime, O Enfezado, tomou ontem posse do seu primeiro disco, numa loja mista com duas entradas e montra ao centro (com uma pêra a pender-lhe do queixo, a voz do dono atende clientes da música; a voz da dona, barbela no lugar da pêra, atende clientes de roupa para bebé e criança). A aquisição não se fez sem a providencial sombra de dúvida que angustia o coleccionador no momento de iniciar a colecção (sem voz para se queixar, Jaime protestou em silêncio). Decidido a levar para casa o produto do seu desejo formado num programa de televisão (gritos, corridas, cabelos a abanar, ídolos sorridentes que acenam para chorosas fanáticas que estendem os braços ou levam as mãos à cara), Jaime, O Mudo, fez o pedido por interposta parte do tradutor que o acompanhava: “Tem os Beatles?” (olhos arregalados, ligeira crispação da boca). O dono da pêra mordeu a franja do bigode, passou os dedos pelas capas e puxou uma para cima. Sem lhe pegar, Jaime, O Descrente, olhou para a capa duplamente enfezado, deu um passo atrás, triplamente enfezado, e abanou a cabeça. “Não são estes?” Deu um passo em frente, fazendo um esforço para adaptar-se ao novo visual que a fotografia propunha e gesticulou com a teimosia que o caracteriza nos momentos em que se julga ludibriado. Sem reconhecer a imagem do grupo, nem o nome inscrito na capa, já que não sabia ler, tripartiu o desânimo em três pontas soltas: o olhar do tradutor, os óculos do vendedor, a visão da capa (encostadas à frente de um portão de madeira, quatro barbas, igual número de cabeleiras e – em hirsuta companhia – um chapéu preto de abas largas sobre a cabeça de um busto careca, ao lado do caixa de óculos). Fotogenia triste versus fotogénica desilusão. Jaime, O Desiludido, voltou a abanar a cabeça e tentou puxar o tradutor para fora da loja, mas este não se mexeu. O vendedor tirou o disco do interior da capa, despiu-lhe a cueca e encaixou-o no bico platinado do gira-discos. A agulha poisou, o vinil começou a deslizar. As faixas foram sendo picadas e o som rodopiou pela sala apertada. O vendedor explicou então a Jaime, O Incrédulo, que os Beatles já não existiam. O seu rosto, modulado por uma caótica revolução no olhar, fez uma inflexão tão dolorosa que por pouco não chorou. Com o disco cuidadosamente seguro debaixo do braço, Jaime, O Conformado, virou-se para trás ao sair da loja e olhou para a montra, onde um manequim de criança apontava com o dedo. Estendeu a mão livre para o seu acompanhante, que tinha pago a conta, e estugou o passo.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
dança descritiva
“Pai, pai”, gritou o Jaime, vindo da rua, depois dum passeio nocturno na companhia do casal de surdos-mudos que viviam no piso de cima. Não obtendo resposta bateu à porta do escriptorio. “Mestre Vaquinhas”, disse, numa mudança de voz que terminou em suspiro, encaixando o queixo no tampo da escrivaninha. “Já posso contar a minha história?” A cadeira rodou na sua direcção. Jaime afastou-se, para ganhar espaço: “Vi um homem que fej assim.” O mestre Vaquinhas perguntou-lhe o que era fej. “Ó, é fajer.” Perguntou-lhe o que era fajer. Jaime fez uma expressão desconfiada. “É como as pexoas fajem”, respondeu de cenho carregado. Perguntou-lhe o que eram pexoas. “As pexoas que andam na rua.” Desconheço. “As pesssoas.” Essas! “Não! Foi um homem, ele fej assim…” Deu dois passos à frente, com o mesmo pé, dois passos atrás, com o outro, depois levantou o braço direito e deu meia volta para trás. O mestre Vaquinhas perguntou-lhe se aquilo era fajer. Jaime quase gritou: “Não!” “Tu é que disseste que ele fej.” “Não é fajer, é fazer.” Compreendo. E então, que fez ele? “Sei lá, era maluco.” “O que é ser maluco?” Jaime não respondeu, olhou para trás e não vendo ninguém encolheu os ombros. Deves saber, ainda agora o tentaste imitar. Faz lá outra vez. Jaime voltou a dar os passos. Mestre Vaquinhas pediu-lhe para repetir. Jaime começou a rir-se e a deslizar pelo soalho do escriptorio. “Ele estava a dançar!” Mestre Vaquinhas pegou-lhe no braço estendido e juntou-se a ele. A irmã, que estava na sala, pôs um disco na aparelhagem. A mãe aproximou-se e roubou o par do mestre Vaquinhas, que por sua vez convidou Joana para dançar também. A música animou, os pares dispersaram e os quatro continuaram a dançar sozinhos. “Vou chamar o Acácio e a Lisete”, lembrou-se o Jaime, que subiu as escadas a correr. Joana, a maldosa, desligou a música e quando o casal entrou na sala, puxando uma intimidada e risonha Lisete pela mão, Joana fez uma vénia a Acácio e estendeu-lhe o braço, num gesto de cortesia que insinuava um convite irrecusável. Em silêncio, os restantes três pares também bailaram pela sala apertada, sob um olhar vítreo vindo da parede. No seu vestido de asas negras, Ladybird encaminhava-se em passo largo para fora da moldura, na direcção do corredor que dava acesso à porta de saída. Na mão esquerda levava um buquê de andorinhas.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
culinária recreativa
Fardada a preceito, com um higiénico lenço atado à cabeça e um avental feito à medida pela avó Celeste, a chefe de cozinha criativa Joana João Silvestre tem vindo a estabelecer um repertório de receitas cuja maior audácia reside numa interpretação lata, porventura indigesta, do regime alimentar dos omnívoros, assim como do célebre adágio popular que manda aprender a comer de tudo um pouco. Patrocinadora desta actividade gastronómica, deve-se à avó Celeste o reconhecimento pela descoberta de semelhante mister. Por ocasião do segundo aniversário da neta, ofereceu-lhe um kit de cozinha, incluindo fogão, lava-loiça, frigorífico, um trem de panelas e serviço de mesa. Já em época natalícia completou o equipamento com um armário para arrumar os utensílios, uma torradeira (com pão às fatias incluído), um prático microondas, um grelhador e um cabaz de víveres em plástico, que a chefe de cozinha não hesita em complementar com os mais diversos e imprevistos ingredientes. Passamos ao menu. Nas entradas: tostas de queijo com frutos cristalizados, amendoins em casca de amêndoas, meloa com broa, pimentos com coentros e sangria de melancia (sem álcool). Nas sopas: peixe em calda de tremoços, sopa de bife com azeitonas, sopa de massinhas com tromba de elefante e rodelas de cenoura, creme de algas com moscas-bebé. Nos pratos principais: puré de batata com lagostas e salsichas, frango com casca de cebola e ananases, leão enrolado em folhas de couve, lulas recheadas com cabeças de macaco, omelete de chiclete, medula de ossos partidos, pernas de barbie grelhadas com cogumelos frescos, caldeirada de urso felpudo com bananas e cuecas com padrões de bonecos. Nas sobremesas: cordões de sapatos embebidos em mel, goela de crocodilo recheada de ervilhas polvilhadas com açúcar, palmilhas achiclatadas, grão de bico com leite condensado, pêra com cera, gelatina com chuva de fios de cabelo e neve de côco, lagartixas caramelizadas, iogurte com hortelã, cascas de maçã assadas no forno com mãozinha de boneca agarrada a pau de canela, sorvete de lápis de cera espetados em bolinhas de algodão, shampôo batido em castelo com pão ralado e passas de uva, bolo de bolacha barrado com plasticina, bolo de massa de gesso, folhado de papel com mel, coquetail de frutos silvestres com pedrinhas e conchinhas, espuma de barbear com compota. Convidado a comentar as iguarias da chefe de cozinha, o provador oficioso e exclusivo Farrusco III, de cuja boca pende uma elástica e gulosa saliva, recolhe a língua e responde “bô”. Sim, estava tudo muito bom.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
batalha de almograve
Joana, a Valorosa Pólipa, e Jaime, o Pequeno Batráquio, numa terrível batalha que ontem teve lugar na praia de Almograve, acrescentaram mais uma jornada de glória à Invencível Armada Silvestre (IAS!), depois de conquistarem uma importante fatia de território ao Atlântico, derrotando o Temível Exército da Maré Alta (TEIMA). O confronto, que teve início pela manhã e se prolongou até ao fim da tarde, deixou exaustos os nossos rudes soldados, que esgotaram a ração de combate (seis sandes, duas bananas, quatro pêssegos, dois pacotes de leite achiclatado, um garrafão dáugua e dois rajás). Choram-se também algumas baixas entre o IAS!: uma barbatana ficou viúva, depois do seu par ser devorado pela TEIMA; os óculos escuros ficaram zarolhos de uma lente, que o soldado desconhecido pisou; umas cuecas constiparam-se, depois de se terem molhado sem necessidade; e a boneca Lúcia, escudeira de Joana, a Valorosa Pólipa, ficou atrozmente mutilada de um braço, em resultado de ter sido enviada consecutivas vezes contra um rochedo, depois de ter participado na construção de uma trincheira, servindo de pá. A estratégia inicial da IAS! foi muito mal pensada. Felizmente ainda foram a tempo de mudar de táctica, de outro modo teriam sofrido uma derrota humilhante. A verdade, nua ou em calções, é esta: comportaram-se como uns maricas. Porque a áugua estivesse fria e molhada, porque fizesse vento, porque o sol estivesse tapado, porque houvesse despojos de batalhas anteriores, os nossos soldados ficaram arreliados. Tadinhos, enrolaram-se nas toalhas e cobriram-se de areia. Apercebendo-se da fraqueza do adversário, a TEIMA atacou com fanfarronice, uma onda aqui, outra vaga ali, e foram conquistando terreno. A IAS! foi arrepiando terreno, recuou, recuou… até ficar entalado entre a espada e o rochedo. Jaime, o Pequeno Batráquio, ainda arreliado por lhe ter sido vedado o acesso a equipamento de mergulho, molhou então os dedos pés. Andava ele a empurrar a areia quando foi atacado nas canelas, à traição. Ripostou. Pregou um valente pontapé no traseiro de uma onda que se desfez em espuma. Depois, vindo já outra espetou-lhe uma bofetada, e não contente com isso a próxima levou uma cabeçada, que lhe provocou uma amolgadela. Depois de destruir uma dúzia de vagas com dolorosos pontapés e golpes de karaté, deu um mergulho, provocando um buraco na TEIMA. Deu-lhe com tanta força que a TEIMA, cada vez mais fraca, e a sofrer baixas sucessivas, bateu em retirada. Baixou a garimpa. Saiu de fininho. Findo o trabalho da artilharia, Joana, a Valorosa Pólipa, entrou em acção. Andou a apanhar pedrinhas e conchinhas, disparou no flanco do inimigo e depois assaltou as divisões de poças e laguinhos onde a TEIMA se refugiou, ficando à mercê da IAS! Fazendo jus ao seu epíteto de pólipo, Joana procedeu então ao saque dos vencedores, estudando nos rochedos as criaturas e o modo de vida no país Atlântico, já que a TEIMA tinha ficado desguarnecida. “TEIMA, mas não ganha” foi o grito de vitória da IAS!, ao abandonar a praia.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
almoço em casa dos avós
Convidados a tomarem parte no almoço de aniversário do casal Aníbal e Celeste Roque, que celebravam algumas décadas de teimosa vida conjugal, os seus netos Jaime e Joana João comportaram-se de forma deplorável durante a cerimónia. Ao cumprimentarem em primeiro lugar o cão de família (Farrusco III), incorreram numa inqualificável e incompreensível inversão das ínclitas regras de boa etiqueta, que os levaria a darem prioridade aos donos. Iniciaram depois uma duvidosa conversação em linguagem canídea, e foi assim, ladrando, que presentearam os seus atónitos avós com algumas lambidelas nas bochechas. Ajudados por estes últimos a sentarem-se nas cadeiras, deslizaram para debaixo da mesa, morderam as canelas dos convidados e danificaram as meias de vidro à tia Lourdes. Como ninguém anuiu a servir-lhes a comida no chão (nem eles aceitaram a comida de Farrusco III, que o avô lhes propôs), acabaram por sentar-se à mesa, as línguas babadas tombando-lhes da boca. Informados de que o coelho que tinham à frente, a fazer companhia ao arroz, se tinha sacrificado em nome daquela festa, fizeram questão de rezar pela sua alma (“Perdoa-nos coelho, vamos comer o teu sangue inocente e a tua carne esfolada, os teus olhinhos doces não mais contemplarão este mundo e os teus ossinhos ficaram todos partidos, amém”) e dedicaram-lhe a sua porção de cenoura, pondo-a à beira do prato. A cada nova garfada, contemplavam o lustre da sala, juntavam as mãos em prece e repetiam os versículos “perdoa-nos coelho, vamos comer outra vez o teu sangue inocente”. Contristada com uma tão pungente compaixão pelo coelho (mas também de imperdoável indiferença ao tempero da Celeste, que o cozinhou, e ao esmero de Aníbal, que o esfolou e trinchou), a sua avó apressou-se a retirar a travessa da mesa, antecipando a vinda da sobremesa. “Celulite, celulite”, gritaram os irmãos, quando surgiram as tigelas com gelatina. “Irra”, disse o avô Aníbal, que deu um murro na mesa, “é assim que os ensinam!” “Cain, cain, cain”, ganiram os netos, com o nariz enfiado na tigela, antes de sorverem os pedaços de morango dentro da gelatina. “Perdoa-nos avó, comemos a tua celulite e queremos repetir.” O avô soltou uma gargalhada, pegou nos dois ao colo e abandonou a sala com os troféus vivos da sua velhice, sob o olhar vítreo e ameaçador de uma cabeça de javali.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
propriedade privada
Continuação da entrevista entre os colunáveis Jajá Roque e Beto de Deus. A conversa decorre agora em propriedade privada. “Ó pai, nós somos mesmo ricos?” Riquíssimos, como vês. “Então por que é que estamos nesta bicha como os outros?” Pelo convívio. “Ó pai, se nós somos mesmo ricos por que é que não somos donos deste parque?” Mas nós somos os donos do parque! “Então por que é que tiveste de inscrever-te para entrar?” Porque sou um democrata e acredito na burocracia. “Então por que é que não te deixaram entrar com o carro, se o parque é nosso? O carro não precisa de fazer-nos companhia. “Então por que é que dormimos numa tenda como os outros?” Porque acreditamos na igualdade das aparências. “Então por que é que não me compras umas socas?” Porque têm solas de madeira e nós os ricos não gostamos de ver árvores amputadas. “Ó pai, nós somos mesmo ricos?” É como vês. “Então por que é que tu não mandas esta gente embora?” Aqui dentro são mais fáceis de controlar. “Então por que é que tu não mandas as pessoas tirarem o lixo do parque?” Porque não quero tirar o emprego aos que são pagos para limpar. “Então por que é que ninguém te ajuda a acender o fogareiro?” Gosto de acendê-lo sozinho. “Então por que é que não tens uma mota de água?” Porque gosto mais de nadar. “Então por que é que não compras um barco?” Porque prefiro andar debaixo de água. “Ó pai, se nós somos mesmo ricos por que é que só estás a assar quatro pimentos?” Porque são muito indigestos, um para cada chega. “Ó pai, o peixe também é indigesto?” Não. “Então por que é que estás a assar quatro carapaus?” Porque não quero que os peixes morram todos de uma vez. “Então por que é que não alugas luz eléctrica para ter na tenda?” Às escuras é mais divertido. “Então por que é que não compras mais brinquedos para eu brincar na praia?” Para que não te esqueças das belezas naturais. “Ó pai, de que serve ser rico se eu tenho as mesmas coisas que os outros têm?” Nós os ricos só damos valor ao que não tem valor. “Ó pai, isso não é ser rico.”
o marcedes
Entrevista automobilizada. Ao volante, Dada São Roque, fita verde na cabeça para não queimar a testa (o tejadilho no capot vai aberto). A seu lado, com uma revista de vida social ao colo, Beto De Deus, o entrevistado. Atrás, debruçado sobre o banco (enquanto a irmã dorme na cadeirinha de segurança), Jajá faz as perguntas (para depois voltar a sentar-se, observar mais um pouco pela janela e voltar à entrevista). “Ó pai, o que é que estamos a fazer aqui dentro?” Os compromissos não nos permitem estar juntos o tempo que gostaríamos, mas fazemos um esforço assaz relativo. “Ó pai, o nosso carro é tão grande porquê?” Porque somos ricos e temos um Marcedes. Como o nome indica, é um carro feito para os ricos como nós irem passear junto ao mar. “Ó pai, o nosso Marcedes é o mais velho da estrada porquê?” Nós os ricos somos antiquados. “Ó pai, o nosso carro anda mais devagar que os outros porquê?” Porque os outros têm medo de chegar atrasados e nós os ricos não receamos melindrar os sentimentos de quem possa estar à nossa espera e ficar aborrecido. “Ó pai, por que é que falas esquisito?” Nós os ricos gostamos de cultivar o silêncio mas não poupamos em palavras. “Ó pai, porque é que os outros carros têm vídeo e alta fidelidade e som surround e nós só temos um leitor de cassetes?” Nós os ricos não vamos em modas. “Ó pai, por que é que tu só ouves músicas antigas?” Nós os ricos somos pela tradição. “Ó pai, por que é que o nosso Marcedes não tem ar condicionado?” É para apreciar o vento que entra pelas janelas. “Ó pai, por que é que os estofos do nosso Marcedes estão rotos?” Nós os ricos somos ricos há muito tempo. “Ó pai, se nós somos ricos porque é que tu não mandas pôr estofos novinhos em folha?” Porque estes estofos não deixaram descendência. “Ó pai por que é que os outros carros têm via verde e nós temos de pagar portagem?” Nós os ricos damos sempre dinheiro a quem nos pede. “Ó pai, por que é que o nosso Marcedes só tem quatro mudanças?” Porque três não chegam e cinco são demais. És o quarto elemento da família, devias saber isso. “Ó pai, por que é que me estás a mentir?” Nós os ricos temos resposta para tudo, mas não damos justificações. “Ó pai, falta muito tempo?” Nós os ricos não temos falta de tempo, temos é falta de dentes, a avaliar pelos dois que tens em falta.
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