sábado, 5 de fevereiro de 2011

dança descritiva

“Pai, pai”, gritou o Jaime, vindo da rua, depois dum passeio nocturno na companhia do casal de surdos-mudos que viviam no piso de cima. Não obtendo resposta bateu à porta do escriptorio. “Mestre Vaquinhas”, disse, numa mudança de voz que terminou em suspiro, encaixando o queixo no tampo da escrivaninha. “Já posso contar a minha história?” A cadeira rodou na sua direcção. Jaime afastou-se, para ganhar espaço: “Vi um homem que fej assim.” O mestre Vaquinhas perguntou-lhe o que era fej. “Ó, é fajer.” Perguntou-lhe o que era fajer. Jaime fez uma expressão desconfiada. “É como as pexoas fajem”, respondeu de cenho carregado. Perguntou-lhe o que eram pexoas. “As pexoas que andam na rua.” Desconheço. “As pesssoas.” Essas! “Não! Foi um homem, ele fej assim…” Deu dois passos à frente, com o mesmo pé, dois passos atrás, com o outro, depois levantou o braço direito e deu meia volta para trás. O mestre Vaquinhas perguntou-lhe se aquilo era fajer. Jaime quase gritou: “Não!” “Tu é que disseste que ele fej.” “Não é fajer, é fazer.” Compreendo. E então, que fez ele? “Sei lá, era maluco.” “O que é ser maluco?” Jaime não respondeu, olhou para trás e não vendo ninguém encolheu os ombros. Deves saber, ainda agora o tentaste imitar. Faz lá outra vez. Jaime voltou a dar os passos. Mestre Vaquinhas pediu-lhe para repetir. Jaime começou a rir-se e a deslizar pelo soalho do escriptorio. “Ele estava a dançar!” Mestre Vaquinhas pegou-lhe no braço estendido e juntou-se a ele. A irmã, que estava na sala, pôs um disco na aparelhagem. A mãe aproximou-se e roubou o par do mestre Vaquinhas, que por sua vez convidou Joana para dançar também. A música animou, os pares dispersaram e os quatro continuaram a dançar sozinhos. “Vou chamar o Acácio e a Lisete”, lembrou-se o Jaime, que subiu as escadas a correr. Joana, a maldosa, desligou a música e quando o casal entrou na sala, puxando uma intimidada e risonha Lisete pela mão, Joana fez uma vénia a Acácio e estendeu-lhe o braço, num gesto de cortesia que insinuava um convite irrecusável. Em silêncio, os restantes três pares também bailaram pela sala apertada, sob um olhar vítreo vindo da parede. No seu vestido de asas negras, Ladybird encaminhava-se em passo largo para fora da moldura, na direcção do corredor que dava acesso à porta de saída. Na mão esquerda levava um buquê de andorinhas.

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