sábado, 12 de fevereiro de 2011

até ao canil

Farrusco III, orgulhoso cão de linhagem, estava cansado. Não retinha líquidos nem sólidos, desperdiçava-os em evacuações domésticas que o deixavam destroçado, confuso, surpreendido e atrozmente envergonhado. Refugiava-se por trás de cortinas transparentes, sem força para uivar nem para encontrar um esconderijo à medida da sua aristocrática altivez. Era um fino animal de caça que nunca ladrava depois de apanhar a presa. Brincava com as crianças e fazia trinta por uma linha com os adultos. Mandava-os ao chão numa inesperada mudança de direcção, ameaçava um ataque frontal com súbita abordagem lateral, bebericava do copo a quem adormecia na matrona, surripiava o comando depois de mudar de canal, lambia o pudim acabado de sair do fogão, deitava-se em camas acabadas de fazer, esfregava-se num lençol de banho durante a queda do pêlo, engolia o último parafuso duma mesa desmontável, comia o botão de rosa oferecido por um galante à moça solteira lá de casa, desenhava com as patas enlameadas, no átrio acabado de lavar, os passos duma dança só por ele conhecida. Foi também um heróico salvador de crianças temerárias e velhinhos temerosos. Não se apoquentava que os gatos, de barriga cheia, lhe entornassem a gamela. Aceitava o castigo sem pedir festas ao castigador. Perseguia insectos, répteis e pássaros sem procurar recompensa. Cachorro, escondia-se porque era vadio e não abdicava de ser livre. Adulto, escondia-se por malandragem e para assegurar o afecto dos donos. Foi um companheiro em horas de solidão e na hora das festas escapava-se aos convidados que o utilizavam como intermediário para fazerem festas aos donos de casa. A fornicar não descriminou raça ou sexo. Como tantos, fazia buracos no quintal, mas quem antes dele soube ordená-los por talhões? Depois de envelhecer escondia-se para evitar ser esquecido e por fim mal conseguia mexer-se. Não suportava a piedade. Provavelmente exageramos, mas somente para compensar o pudor com que entrou para o banco de trás do carro que o levou ao canil. Sem uma teimosia de última hora, sem desconfiança, sem um olhar pela janela. Jaime em lágrimas sentado a seu lado e Farrusco III num último gesto galhardo, boca fechada e pálpebras descaídas, à janela a sentir o vento nas orelhas. Jaime a tirar-lhe a coleira e Farrusco III numa vénia de rendição. Virou-se para trás antes de franquear a porta e continuou a marcha num esforço culminante. Na viagem de regresso do canil, o patriarca Aníbal São Roque (para quem o adágio “um homem nunca chora” não admite excepções) pediu duas vezes ao neto para não chorar. Antes de pedir uma terceira vez, a voz escapou-se da garganta e só teve tempo de carregar no travão e sair porta fora. Reapareceu cinco minutos depois, com uma expressão militar estudada e uns olhos vidrados.

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