sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

a arte perdida da fumigação

Oferendas, dádivas, holocaustos, sacrifícios, homenagens, rituais, promessas cumpridas, pagamentos de dívidas são expressões diversas dum sentimento comum, o de transferirmos para o desconhecido a incapacidade em alterar um determinado aspecto da realidade que nos afecta, encontrando em práticas substitutivas um crédito que nos permite suportar, e até mesmo fruir, a espera de algo que se caracteriza pela ausência.
Primeira cena: Duas crianças atiçam as chamas duma fogueira, nas traseiras duma casa de camponeses. Sob o crepitar da lenha, faúlhas elevam-se das chamas. Do lado oposto da fogueira, sentada sobre uma cerca, a mãe das crianças fala ao telemóvel e leva o cigarro à boca.
Pretendemos falar do malefício dos cigarros, como tantos especialistas bem intencionados, mas não o do terrorismo médico (uma estratégia de propaganda cuja violência reside em fazer-nos habitar cenários que não nos pertencem necessariamente). Antes de tratarmos dos fumadores, concentremo-nos no fumo que libertam. Melhor ainda, voltemos atrás, a um tempo sem fumadores, em que nenhuma mulher ou homem conheciam o hábito ou sofriam do vício.
Segunda cena: As crianças que inalam o fumo e o expelem para a atmosfera fumigam a cozinha. Os vapores dos cozinhados acumulam gorduras e humidade, atraem insectos, fungos e demais formas biológicas inacessíveis a olho nu, aí encontrando minúsculos ecossistemas altamente nutritivos, suficiente justificação para se instalarem. Ao secarem o ar, com o fumo que expelem, as crianças fumigadoras atenuam a intensidade destes sabores que se fundem na atmosfera e atraem pequenos invasores de faro apurado e apetite duvidoso.
Não basta fumigar os cantos da cozinha. Organizados em regimentos de batedores, equipas de exploradores ou grupos de excursionistas, há insectos cheios de curiosidade a passearem por ângulos e cantos, espaços cuja intersecção de linhas lhes permite sondar um mundo bidimensional que por enquanto mal dominam.
A extremidade de uma superfície horizontal (o chão, o tampo de uma mesa) em contacto com uma linha de intersecção (um copo, a beira de um prato, os pés da mesa, a porta do fogão, uma parede) são paisagens sobejamente atraentes para merecerem uma visita. Mas como a respiração ali não é agradável (resultado da secagem do ar pela fumigação), retiram-se em direcção a outros pequenos mundos de arestas por descobrir (entre as nossas amigas formigas, também se encontram aventureiras).
Havendo abundância de alimento, as baratas estão dispostas a resistir à má qualidade do ambiente, usando as cozinhas e outras divisões como colónias. Se não encontrarem alimento retiram-se, embora no caso das baratas tenhamos de dar crédito à sua extraordinária capacidade de adaptação, aprendendo a digerir os víveres mais inverosímeis. Outra possibilidade é as baratas criarem cativeiros (ou insectários) de espécies ainda mais pequenas que lhes sirvam de alimento, cabendo à baratas encontrar o sustento da criação que faz parte da sua cadeia alimentar.
Não devemos surpreender-nos com a falta de critério das baratas. Nas grandes cidades, elas actuam num permanente estado de guerra: a precisão dos seus ataques, quando entram pela frincha de uma parede por trás do fogão, é bem mais importante do que a sua capacidade de julgar a qualidade do resgate, para a qual não lhes sobra tempo nem disposição.
As crianças continuam a fumigar, inspiram a plenos pulmões. Não lhes fará mal? A corrente de ar que entra pela chaminé e encontra uma saída na janela aberta, expulsa as partículas gasosas que se desprendiam da combustão de folhas. Na cozinha apenas resta o aroma doce da planta queimada (e fumigada), engenhosamente escolhida para despistar as baratas, entontecer as formigas e relaxar agradavelmente as crianças depois da fumigação. E que planta usada para a fumigação é essa? Terão de perguntar às crianças
“Ó mãe, que planta é esta?”
“Pergunta à avó”
O ódio mítico que os cozinheiros nutrem por baratas explica-se pelo facto da presença destas constituir a prova de que os seus cuidados de higiene estão longe da perfeição desejada ( barreira de segurança que criaram termina nos rolos de cotão pintalgados de manchas de bolor e em pingos de gordura polvilhados de saborosas migalhitas). Essa intimidante coabitação ofende as prerrogativas sociais do proprietário de cozinha (antevendo que o próximo passo é ser obrigado a respeitar a igualdade de voto de uma barata numa reunião de condomínio). Quanto mais souber da barata, tanto maior será a tendência para afeiçoar-se a ela. Opta assim por uma repulsa extemporânea e cheia de preconceitos.
Os frequentadores de cozinhas tendem a perseguir com maior acuidade as formigas. Tal deve-se ao facto das formigas (assim como as moscas) serem mais fáceis de apanhar e aquilo que os frequentadores de cozinha verdadeiramente perseguem não é a eliminação do bicharoco intruso, mas as boas graças da cozinheira. Bem, o motivo principal, para falar a verdade, pode ser outro. O frequentador de cozinhas alimenta-se dos produtos que por lá se encontram e não lhe agrada que estejam a depenicar-lhe o prato mesmo depois de acabar a refeição. O insecto visível à vista desarmada (expressão deveras enganadora neste contexto) ofende o seu estatuto privilegiado de poder servir-se, e não está disposto a partilhá-lo com uma mosca pedinchona e um carreiro de formigas salteadoras (seria como reconhecer à esmola e ao furto o estatuto de actividades económicas).
As crianças sentem-se reconfortadas. Após a fumigação, foi-lhes reconhecido o direito a sentarem-se à mesa para jantar com os adultos. Como recompensa da fadiga terão um sono descansado. Maas não isento de ataques aéreos…
Terceira cena: duas crianças dormem destapadas numa cama de casal, protegida por uma rede pendurada no tecto. A parede, por trás da cama, projecta a sombra das asas duma borboleta, poisada no abat-jour do candeeiro por cima da mesa de cabeceira. Sobre uma superfície rosada e curva (o ombro do rapaz) uma melga bebe-lhe o sangue.
Uma melga que as pique durante a noite é quanto basta para maldizerem, ao acordar, a péssima fumigação executada na véspera.
“Coitadinhos”, lamenta a avó Celeste, cobrindo os netos de mimos, depois de ter-se esquecido na véspera de proteger as camas com um mosquiteiro.
“Mas não foram as melgas?”, pergunta-lhe o neto espevitado e inflamado.
Quarta cena: Eis que já não sobram insectos em casa (ou eles não se deixam ver). Mesmo assim, as crianças calcorreiam as divisões de fumigador na boca, com óbvias intenções vingativas. Estudemos um pouco melhor o instrumento: um cone de papel pardo aceso numa das pontas, contendo folhas secas esmigalhadas. Com a outra extremidade na boca, a criança fumigadora chupa o ar, de forma a atear as folhas. Já houve um tempo em que, menos experiente, se limitava a soprar. O fumo que saía do fumigador era insuficiente e pouco depois apagava-se. Outra técnica que a criança fumigadora aprendeu é a reter o máximo de fumo na boca, de forma a expelir maiores quantidades para a atmosfera.
Fumigar é uma tarefa doméstica, embora apresente semelhanças com as queimadas nos campos. É uma tarefa desempenhada por crianças, as únicas que nela encontram maneira de se divertirem. Sopram o fumo para o tecto e observam alegremente as miniaturas de nuvens, fazendo, refazendo e desfazendo criações, recriações e descrições imaginadas.
Mas os acidentes acontecem, principalmente em tarefas que dependem do trabalho infantil. O menino distrai-se e engole o fumo. A rapariga, mais velha do que o irmão, fica estática de pavor. A expressão da criança que engoliu o fumo é fulminada por um êxtase rápido e logo se transforma numa máscara de vácuo. Uma revolução opera-se num organismo, o seu, que ainda lhe é estranho, mas que se manifesta subitamente, de forma caótica e apavorante. O menino regressa de repente a si: tosse, como a caldeira dum vulcão ao cuspir a sua gosma de fogo. Por fim chora, reacção emocional que simultaneamente irriga as vias óptica e respiratória afectadas.
A rapariga ao seu lado, observou tudo e fica confusa numa amálgama de medo, perigo e curiosidade: E se for bom – questiona-se ela – mesmo que por um segundo? Meio segundo já é melhor que nada, e tudo pode ser eterno num segundo, principalmente no cérebro arejado duma criança, cheio de neurónios desabitados e extáticas experiências nunca vividas. A rapariga acende o fumigador. Ateia-o numa inspiração, abre a traqueia e expulsa lá de dentro...
Escuta lá miúda, diz-me uma coisa: o que é que estava dentro do fumo?
“Um comboio”
Um comboio de fumo. Não viu tudo, como o rapaz, mas apenas um comboio. Os neurónios não se acenderam todos, apenas alguns ficaram iluminados, na forma de muitas carruagens a perfurarem um túnel no vácuo. Ainda há um instante dentro de si, dando a sensação de um brinquedo, o comboio é agora uma imagem à sua frente.
Por trás do fumo insinua-se uma temível projecção: a de um comboio gigante, que quer voltar para dentro dela, apesar do tamanho ser desproporcionado. Nessa noite não volta a fumigar. Este acto temerário doravante representa um pequeno passo para o fumigador, mas um grande salto para o surgimento do fumador.
O menino que fumou inadvertidamente tão cedo não voltará a querer repetir uma experiência tão assustadora. Por seu lado, a rapariga que fumou em consciência não voltará a fumigar como antes. Ela sabe agora do fascínio (que experimentou) e do perigo contido no fumo (observado no menino). Identifica-se com os insectos e questiona-se sobre a possibilidade de retirarem algum bem da fumigação (à semelhança do comboio que avistou ao inalar).
Embora se exponha aos malefícios já identificados no irmão, precisa de experimentar outra vez, não só para iluminar com outras imagens mais alguns neurónios em branco, mas também para tentar perceber que imagens ocorrerão ao insecto fumigado. Ambos partilham imagens, mas à distância de quantas dimensões? As imagens da criança são ópticas (o fumo do comboio), as da barata olfácticas (o fumo da planta queimada).
Quinta cena: plano aproximado de um carril, atravessado pelas rodas de um comboio. A deslocação do ar agita as plantas que crescem junto às tábuas. Entre a gravilha que rodeia o carril, beatas de cigarro.
Caso venham a tornar-se fumadoras, o menino arrisca consumir-se, como um doente viciado no veneno que lhe tira a saúde, enquanto a rapariga pretende consumar essa imagem que lhe dá acesso à outra dimensão, a dimensão que está do lado da experiência do outro (e esse outro pode ser um menino engasgado ou uma barata que muda de rota).
Tudo é fugaz, os insectos mais ainda. O sentimento de ausência não só define um saudoso coração amputado de companhia, como distrai e por fim faz esquecer uma esperançosa carreira entomológica. Quanto mais envenenada de substâncias tóxicas estiver a composição do cigarro, maior será a vontade do fumador em exterminar o insecto desconhecido. Por outro lado, se o tabaco for aromático e o papel de boa qualidade, o perfume que se expande no ar irá agradar ao desconhecido a cujas imagens ele quer aceder.

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