quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

dia da mãe

Atacado por uma febre que lhe devorou em vinte e quatro horas as mil e quinhentas gramas que tinha ganho no campo, em casa dos avós maternos, o convalescente Jaime Roque passou a manhã deitado na cama, recusando-se a comer e a lavar-se das toxinas malcheirosas transpiradas durante a noite. Às três da tarde abandonou o quarto. Sentou-se na varanda, a mordiscar rodelas de pepino e fatias de pão barradas com manteiga e marmelada, e a observar numa atenção hipnótica as flores que tinham rebentado nos vasos. Sem dizer ai, refugiou-se na casa de banho, forçando o esquentador a produzir meia hora de água quente. Encavalitada no braço do sofá, Joana explicava à mãe o presente que lhe tinha construído (um insectário de formigas que tinham de atravessar um labirinto para chegar à comida). A mãe deu-lhe um beijo, levantou-se e pendurou o insectário na parede ao lado da porta da varanda, onde se encontrava um camarão sem uso, desde que se partira o espelho. Jaime reentrou na sala em cuecas e sentou-se à frente da irmã. A mãe ajoelhou-se aos pés dele e segurou-lhe nas mãos, assentes sobre as pernas magras e compridas, onde começava a despontar uma fina penugem, que o último raiar da tarde acobreava. Jaime levantou-se e trocou de lugar com a mãe, deu dois passos atrás e o ombro nu ficou recortado num feixe de luz que entrava pela porta da varanda. Fixando um ponto algures no corredor em frente, declamou para a assistência o poema em sua homenagem.

A minha linda mãe
Polvilhada do pólen
Que o meu pai largou
Deu-me à luz no Alcalém
Através de pétalas
Que ninguém contou
[pausa; retomar de fôlego]
E se no mundo houver mães
Como as flores polenizadas
Que sejam os filhos
A trazer o amor
E não os homens
Por quem foram desfolhadas

Impressionada pela eloquência do irmão, Joana perguntou o que queria dizer desfolhadas. Não se tendo apercebido do décimo verso, o pai duvidava da possibilidade científica dos filhos desfolharem as mães. Vera tinha o rosto lavado em lágrimas. Quando Jaime se levantou do sofá, apercebeu-se de uma nódoa negra que o filho tinha junto às virilhas (provocada pelo quadro da bicicleta do avô, que era alta de mais para ele: como não chegava com os pés ao chão, uma travagem brusca equivalia a escorregar do selim). Enquanto ele avançava no poema, numa trepidante voz infantil, sem entoação nem equilíbrio, a ela ocorriam-lhe os caminhos inseguros que ele tinha escolhido, o esforço das suas pernas miúdas a pedalarem e a tenacidade com que lhe recitava o poema, sem um único queixume.

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