quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

almoço em casa dos avós

Convidados a tomarem parte no almoço de aniversário do casal Aníbal e Celeste Roque, que celebravam algumas décadas de teimosa vida conjugal, os seus netos Jaime e Joana João comportaram-se de forma deplorável durante a cerimónia. Ao cumprimentarem em primeiro lugar o cão de família (Farrusco III), incorreram numa inqualificável e incompreensível inversão das ínclitas regras de boa etiqueta, que os levaria a darem prioridade aos donos. Iniciaram depois uma duvidosa conversação em linguagem canídea, e foi assim, ladrando, que presentearam os seus atónitos avós com algumas lambidelas nas bochechas. Ajudados por estes últimos a sentarem-se nas cadeiras, deslizaram para debaixo da mesa, morderam as canelas dos convidados e danificaram as meias de vidro à tia Lourdes. Como ninguém anuiu a servir-lhes a comida no chão (nem eles aceitaram a comida de Farrusco III, que o avô lhes propôs), acabaram por sentar-se à mesa, as línguas babadas tombando-lhes da boca. Informados de que o coelho que tinham à frente, a fazer companhia ao arroz, se tinha sacrificado em nome daquela festa, fizeram questão de rezar pela sua alma (“Perdoa-nos coelho, vamos comer o teu sangue inocente e a tua carne esfolada, os teus olhinhos doces não mais contemplarão este mundo e os teus ossinhos ficaram todos partidos, amém”) e dedicaram-lhe a sua porção de cenoura, pondo-a à beira do prato. A cada nova garfada, contemplavam o lustre da sala, juntavam as mãos em prece e repetiam os versículos “perdoa-nos coelho, vamos comer outra vez o teu sangue inocente”. Contristada com uma tão pungente compaixão pelo coelho (mas também de imperdoável indiferença ao tempero da Celeste, que o cozinhou, e ao esmero de Aníbal, que o esfolou e trinchou), a sua avó apressou-se a retirar a travessa da mesa, antecipando a vinda da sobremesa. “Celulite, celulite”, gritaram os irmãos, quando surgiram as tigelas com gelatina. “Irra”, disse o avô Aníbal, que deu um murro na mesa, “é assim que os ensinam!” “Cain, cain, cain”, ganiram os netos, com o nariz enfiado na tigela, antes de sorverem os pedaços de morango dentro da gelatina. “Perdoa-nos avó, comemos a tua celulite e queremos repetir.” O avô soltou uma gargalhada, pegou nos dois ao colo e abandonou a sala com os troféus vivos da sua velhice, sob o olhar vítreo e ameaçador de uma cabeça de javali.

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