segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

entrevista a joão silvestre

O olho direito, o mesmo que utiliza para focar e enquadrar, tem 25 milímetros de diâmetro e está relativamente descaído em relação ao irmão do lado. A pálpebra, “o estore do olho”, quase tapa a parte superior da íris: “vejo através das pestanas”). Vê “maniacamente bem” ao perto, mas sem a ajuda do irmão distrai-se com as distâncias. O olho esquerdo, que fica aberto no momento de carregar no botão (“olha o passarinho”) mantém-se alerta, inspeccionando a imagem a nu. Tem 24 milímetros de diâmetro e tem sempre os “estores subidos”. Ao contrário do irmão à direita, vê mal ao perto (“até as manchas são desfocadas”) mas é capaz de distinguir as garras duma águia a voar (“coitadinha, partiu uma unha”). Juntos fazem um par amoroso “e com muitos filhotes fotografados”, separados são incompletos, ficam inválidos.
“A minha mãe, quando eu era adolescente e vivia complexada por ter um olho maior do que o outro, costumava dizer-me: cada olho sua visão, cada visão seu pensamento. Há dois anos atrás feri a córnea e andei durante duas semanas com o olho esquerdo tapado por uma gaze. Tive de cancelar o trabalho, era como ver as coisas pelo buraco duma fechadura. Não gosto de pensar que ando a espreitar os outros. Enquanto não melhorei, limitava-me a ler e a coser botões.”
Aos 22 anos, João Silvestre é uma das mais respeitadas repórteres fotográficas internacionais. Os editores perseguem-na, as agências propõem-lhe contratos milionários, mas os seus trabalhos são refractários a encomendas, surgem de surpresa, provocando o efeito dum golpe de teatro no contexto da imprensa e da produção de notícias. A sua independência, diz ela, não é para defender a liberdade de expressão nem para fugir à rotina, deve-se antes à incapacidade de suportar as expectativas.
“Não sei trabalhar sob pressão. Quando acabei o curso fiz uma proposta de estágio na redacção de um diário. Aceitaram-me porque ia muito bem referenciada por um professor que tinha sido editor do jornal. No primeiro dia de trabalho deram-me três serviços. Em dois deles nem consegui tirar uma fotografia.” Careta seguida de sorriso nervoso: “Perdi logo a confiança do editor. Durante o resto da semana mandou-me fazer um trabalho de arquivo, sobre bairros ilegais que iam ser demolidos. Voltei à redacção quatro dias depois para fazer as primeiras revelações. O editor, vendo-me só com um rolo na mão, nem me deixou entrar no laboratório: como é que podes ter feito um rolo completo se os bairros da lata já nem existem? disse-me ele. O trabalho tinha sido o sinal de código para dizer: estás despedida.”
Esse mesmo trabalho um ano depois daria a Portugal o primeiro prémio da Word Press Photo. Há quem considere João Silvestre uma fraude. Acusada de montagens e encenações, os seus críticos mais benévolos acham apenas que tem sorte, aparece no lugar certo, no momento certo. Admiram-se que o achado duma vida, que os colegas de profissão ambicionam ter uma só vez durante a carreira, no caso dela se repita com intervalos tão curtos. João Silvestre não está certa que seja um caso de sorte, mas de paciência.
“Como tantas pessoas fazem, leio jornais. Recorto as notícias que considero mais relevantes e depois organizo pastas temáticas, onde colecciono os textos que encontro referentes ao mesmo assunto. Isso permite-me ter uma ideia da evolução dos problemas, antecipar novos desenvolvimentos de um processo em curso. Quando sinto que algo está para acontecer, vou para o local e espero. A sorte, se existe, tem a ver com o tempo de espera. Posso ficar retida durante um dia, durante uma semana, mas também durante seis meses. O meu irmão Jaime foi actor e acontecia-lhe o mesmo. Se fazia publicidade, durava um dia, se fazia cinema participava nas rodagens durante uma semana, se tinha a sorte de participar numa telenovela, podia aguentar-se durante um ano.”
Ó João, claro que não podia.
“Poder, podia. Ele é que não queria.”
A escolha do local faz-se por parâmetros, no interior duma escala que vai aumentando à medida que se aproxima “como um zoom”, até chegar ao epicentro duma história particular, que muitas vezes só de forma indirecta se relaciona com o acontecimento que a levou a dirigir-se a um país, a uma região, a uma cidade ou a uma simples rua. Foi assim que fotografou um grupo de miúdos a escalarem os oito metros do muro na fronteira palestiniana, para irem buscar uma bola de borracha que tinha ido parar a Israel. Foi assim que viu uma mulher iraniana a passear pelas ruas de Teerão coberta por um lenço e nua por baixo. Foi assim que viu um adolescente numa peladinha em Joanesburgo a segurar uma bola de futebol entre a testa e a ponta da sua comprida língua (malabarismo que, prometeu repetir na final do Mundial de futebol para celebrar o primeiro campeão africano). Foi assim que viu dois street racers portugueses a saltarem dos seus carros, no momento em que se despenhavam num desfiladeiro. Foi assim que viu uma menina de seis anos a dar uma canelada em Fidel Castro, antes dele fazer o discurso anual da revolução cubana. E que fotografou um adolescente com um aparelho de correcção nos dentes e um cordão metálico à volta do pescoço a sorrir para um tubarão numa praia de Cape Cod, perante a expressão alucinada de dois banhistas em fuga. E que fotografou um bem disposto terrorista a sair do avião privado de George Bush depois de esvaziar um copo de rum-cola (bebida também conhecida por Cuba Libre). E que fotografou uma criança enlameada numa ilha indonésia, a construir uma casa de brinquedo com pauzinhos, junto a um regato, tendo por trás a casa dos seus pais, destruída na sequência dum maremoto. E que fotografou um milhão de operários chineses numa inédita greve de trabalhadores contra o regime capitalista-comunista.
“O que impressiona as pessoas é a espectacularidade da imagem. Para mim trata-se dum problema de composição. Quanto mais complexa for a imagem, maior é o efeito que causa. Se tirar uma fotografia a uma multidão, o que resulta da imagem não são as pessoas que fazem parte dessa multidão. Por outro lado, se apenas me concentrar numa dessas pessoas elimino o facto dela fazer parte da multidão. Entre estas duas possibilidades, há um sem número de variações possíveis. É como aquela pergunta que me faziam quando eu era miúda: consegues ver o teu pai no meio dos homens ou no meio dos burros? Antes de responder que era no meio dos homens, tentava sempre reconhecer os outros que estavam à volta dele”
E depois diziam-te: então o teu pai é um burro!
“Quanto maior for o número de combinações, mais contraditória é a ideia de multidão, mais difícil se torna ter só uma leitura da imagem. Provocando múltiplas leituras, a imagem desperta outras interpretações”
Onde devia estar um burro aparece o homem!
“São níveis diferentes de atenção. Se um fotógrafo se deixa apanhar pelo primeiro estímulo, é atraído pelo efeito primário do acontecimento e a imagem resulta anedótica. Mas se deixar que o acontecimento se desenrole, o tempo reverte a seu favor. A maioria dos fotógrafos estabelece uma relação pessoal com aquilo que está à sua frente, isso é uma limitação. Estando disponível para as diversas relações que se estabelecem, desaparece o confronto com a imagem. Para mim o confronto deve estar na imagem.”
Quem és tu, João Silvestre? (não percebe a pergunta, sem dúvida inútil, mas as flores de retórica haverão de servir para alguma coisa, como por exemplo presenteá-la com a nossa atrapalhada admiração, que não procura saber quem ela é de facto. A intimidade posta a nu, um rosto ao espelho: do outro lado há qualquer coisa de certeza, mas não é a pessoa frente ao espelho. Apenas o interior dum armário, uma parede esburacada. Mesmo assim, a pergunta mantém-se)
“Sou repórter fotográfica, é o que faço.”
Uma fotografia o que é? A imagem duma boa história e tu não vais contar a tua história. Concentra-te no aqui e agora. O resto são projecções e tu não te interessas por cinema.
“Não sou muito feminina e nunca fui muito bonita (o meu irmão era mais). E também não fui mimada [gargalhadas do entrevistador]. O meu passado é banal, o que me deixa inteiramente satisfeita. [o entrevistador discorda e contra-ataca] Se fui maltratada?”
Faz um sorriso de Gioconda. Agora vais dizer como é que preparas o trabalho e quem for bom entendedor ver-te-á à transparência. Podes começar.
“Opto sempre por um acontecimento que vai dar-se numa data concreta, que resulta dum processo histórico em curso e pode ser mais ou menos relevante na agenda da imprensa internacional.”
Não sejas aborrecida. Fala.
“Quando chego ao local o tema em si já não me interessa, deixo-me levar por assuntos corriqueiros, pelas pessoas que conheço ao acaso. Mesmo algumas coincidências à partida inocentes levam-me a seguir as pistas para onde apontam, não porque acredite na inspiração, mas porque me divirto. Não se trata de fugir às expectativas, simplesmente não lhes dou importância. Não me interessa o lado simbólico quando estou no terreno (seja uma guerra ou uma famosa estância turística), uma boa fotografia arrasta um símbolo consigo, mas pode não ser o mesmo.”
Estou quase a dormir.
“Também não me considero uma iconoclasta.”
Acorda-me se começar a ressonar.
“Uma imagem, a partir do momento em que a fixo, inicia um percurso: revelação, impressão, por aí fora. Se vier a tornar-se popular, transforma-se num ícone, mas isso não depende de mim.”
Já acabaste? Então agora vais falar das tuas influências até a luz vermelha aqui do aparelho se apagar.
“As influências são muitas, mas se não forem os meus críticos e admiradores a encontrarem-nas não hei-de ser eu a facilitar o trabalho. Onde é que vais?”
Vou deitar-me. As tuas respostas dão-me sono.
“Já que insiste recordo um momento importante. Tive um namorado que decidiu ir estudar para Londres. Informou-me a uma segunda, foi-se embora na terça. Três meses depois voltou (não me viu, que eu não deixei). Antes de voltar à Inglaterra deixou aí em casa um caderno. Não me lembro de quase nada do que me escreveu, mas houve uma página que valeu por todas. Ele também gostava de fotografia. Na noite em que me escreveu o caderno houve um homem que meteu conversa com ele e fez-lhe uma proposta. Tinha de escolher entre duas opções: ou ser levado numa máquina do tempo para sítios onde se deram acontecimentos históricos, e seria apenas mais um fotógrafo a juntar aos outros que lá estiveram, ou ser levado para sítios em que não podia saber o que iria acontecer, mas com a certeza de ser o único a fotografar acontecimentos tão importantes como aqueles que se tornaram célebres. É fácil reconhecer importância à história, quando ela já foi escrita e se encontra documentada. Difícil é não fugir dela quando está a acontecer.”
Preferimos imaginar João Silvestre a espreitar por um buraco com um pequeno mundo lá dentro e que ela dá a conhecer, como um bibelô escondido na parte de trás duma prateleira onde uma lagarta foi tecer o seu casulo. Ao transformar-se numa borboleta vai desdobrar as asas e ficar presa lá dentro. A menos que alguém se lembre de espanejar o armário e partir acidentalmente o bibelô, que não passava duma boneca de cerâmica muito feia [risos da entrevistada].
As perguntas acabam, a conversa ganha asas. Quem nasce aprisionado, mesmo que arranje maneira de libertar-se nunca mais deixa de pensar como será a próxima prisão. O truque está em não procurar, para não ter de fugir… Os lugares são maus destinos, mas bons pontos de passagem…
“Sou muito dada a treçolhos”
Já foste a um especialista? Os nossos corpos são como ecossistemas de formas de vida tão pequenas ao ponto de ignorarmos a sua importância… Somos um ponto de passagem…
“Gosto de pensar nas minhas origens. Foi neste país onde tudo começou para mim, é o meu ponto de partida, mas não sinto que seja a minha terra…
“Dentro dum milhão de anos não haverá um único ser humano neste planeta, não por a humanidade se ter extinguido, mas porque encontrou outros lugares para habitar, ou porque se transformou em outras espécies. Para mim, isso seria terrível, da mesma maneira que para a minha mãe seria terrível abandonar o seu país, ou para a minha avó foi terrível abandonar a sua aldeia.”
Quem te diz a ti que dentro de quinhentos anos as pessoas não vão achar o mesmo?
“O mesmo? Daqui a 500 anos a esperança de vida pode ser de 500 anos. Não é grave perder a terra que está na nossa memória, desde que asseguremos a memória da nossa terra [nota da entrevistada: eu não disse nada disso!] Os lugares permanecem, a viagem continua. [nota da entrevistada: nem sei o que isto quer dizer!] A imagem é um testemunho de passagem. [Ó pai, porque é que inventas?] O meu irmão não está comigo, mas acompanha-me.” [Ó pai]

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