terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

depois do acidente

Não tinha mais do que cinco, seis anos quando fui a uma exposição de banda desenhada onde vi um trabalho em que as pranchas eram constituídas por recortes de fotografias de revistas antigas. Uma das pranchas era constituída por tiras com parcelas de terra vistas de muito perto e, na tira de baixo, um casal de namorados deitado no chão. Não se via a cara deles, o que dava à composição uma intimidade cheia de mistério e de pudor, com um efeito quase mágico, que resultava duma abordagem muito concreta, muito material, do acto de ver. Durante uma viagem que fiz pela Malásia (com o objectivo de fotografar o processo de modernização urbanística do país), numa altura em que passava pela orla duma floresta, o carro onde eu seguia foi obrigado a interromper a marcha. Tinha havido um acidente e gerou-se um engarrafamento. Quando me aproximei do sítio onde estava o carro que se despistou, os corpos já tinham sido retirados do seu interior. O corpo da mulher estava encostado ao do seu companheiro, que tinha o braço esquerdo por baixo do pescoço dela. Pareciam estar abraçados, com o braço direito dele a descansar sobre a barriga. Com o excesso de calor e de humidade os insectos voltejavam em redor do sangue e uma das testemunhas puxou do seu lenço de bolso para tapar a cabeça da mulher. O companheiro, de olhos abertos, tinha um lenho a toda a largura da testa. O sangue cobria-lhe o rosto e acumulava-se à volta das pálpebras, colando as pestanas e impedindo os olhos de serem fechados. Estava irritada com aquela azáfama e excitação à volta do acidente e lembrei-me do casal estendido no chão, na tal prancha feita com recortes de fotografias. Ainda fiz um enquadramento semelhante, entre os ombros e a cintura, mas optei antes por tirar a fotografia ao alto, mantendo o enquadramento pela cintura e pelos ombros (o que incluía o abraço), mas dum ponto de vista rente ao chão, o que dá esta ilusão dos cadáveres estarem enterrados na vegetação que os cerca. Na parte superior da imagem ainda se vê parcialmente o carro, com o vidro da frente partido e as copas das árvores, que fecham o espaço. Conscientes de que estavam a posar para a posteridade, as testemunhas do acidente ficaram subitamente absortas (não é a imagem que as imobiliza, foram elas que se imobilizaram para a imagem). Reparem neste homem: preparava-se para cobrir os cadáveres, mas fez um compasso de espera. O lençol, que segura junto aos ombros, tapa o seu próprio corpo, apenas dando a ver, sob uma ruga na testa, um olhar que se estende fora do enquadramento.

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