domingo, 6 de fevereiro de 2011
a capa e o busto
Operado de fresco a uma amigdalite que o deixou provisoriamente sem pio (um descanso), Jaime, O Enfezado, tomou ontem posse do seu primeiro disco, numa loja mista com duas entradas e montra ao centro (com uma pêra a pender-lhe do queixo, a voz do dono atende clientes da música; a voz da dona, barbela no lugar da pêra, atende clientes de roupa para bebé e criança). A aquisição não se fez sem a providencial sombra de dúvida que angustia o coleccionador no momento de iniciar a colecção (sem voz para se queixar, Jaime protestou em silêncio). Decidido a levar para casa o produto do seu desejo formado num programa de televisão (gritos, corridas, cabelos a abanar, ídolos sorridentes que acenam para chorosas fanáticas que estendem os braços ou levam as mãos à cara), Jaime, O Mudo, fez o pedido por interposta parte do tradutor que o acompanhava: “Tem os Beatles?” (olhos arregalados, ligeira crispação da boca). O dono da pêra mordeu a franja do bigode, passou os dedos pelas capas e puxou uma para cima. Sem lhe pegar, Jaime, O Descrente, olhou para a capa duplamente enfezado, deu um passo atrás, triplamente enfezado, e abanou a cabeça. “Não são estes?” Deu um passo em frente, fazendo um esforço para adaptar-se ao novo visual que a fotografia propunha e gesticulou com a teimosia que o caracteriza nos momentos em que se julga ludibriado. Sem reconhecer a imagem do grupo, nem o nome inscrito na capa, já que não sabia ler, tripartiu o desânimo em três pontas soltas: o olhar do tradutor, os óculos do vendedor, a visão da capa (encostadas à frente de um portão de madeira, quatro barbas, igual número de cabeleiras e – em hirsuta companhia – um chapéu preto de abas largas sobre a cabeça de um busto careca, ao lado do caixa de óculos). Fotogenia triste versus fotogénica desilusão. Jaime, O Desiludido, voltou a abanar a cabeça e tentou puxar o tradutor para fora da loja, mas este não se mexeu. O vendedor tirou o disco do interior da capa, despiu-lhe a cueca e encaixou-o no bico platinado do gira-discos. A agulha poisou, o vinil começou a deslizar. As faixas foram sendo picadas e o som rodopiou pela sala apertada. O vendedor explicou então a Jaime, O Incrédulo, que os Beatles já não existiam. O seu rosto, modulado por uma caótica revolução no olhar, fez uma inflexão tão dolorosa que por pouco não chorou. Com o disco cuidadosamente seguro debaixo do braço, Jaime, O Conformado, virou-se para trás ao sair da loja e olhou para a montra, onde um manequim de criança apontava com o dedo. Estendeu a mão livre para o seu acompanhante, que tinha pago a conta, e estugou o passo.
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