A final do torneio de ténis de Calem terminou ontem no court À-Sombra-da-Ameixoeira-das-Traseiras sem vencedor. O jogo entre João Roque e Joana Silvestre foi interrompido quando se registava um empate (parciais de 7-5 e 4-6) e a taça destinada ao vencedor, uma magnífica peça em vidro de fabrico industrial, foi utilizada pelo árbitro para emborrachar-se.
A interpretação das leis do jogo foi o motivo de discórdia. Joana Silvestre, vestindo uma saia verde-alface e uma camisola branca com buracos nos ombros e nas costas, não concordou com a perda de um ponto em que mandou a bola fora, uma vez que o adversário estava em posição de jogá-la (com este ponto Jaime Roque quebrou o serviço de Joana Silvestre). Jogando com o equipamento oficial do Atlético de Calem (camisola às listas amarelas e azuis, peúgo vermelho), Jaime Roque não gostou de ver validada uma bola de serviço de João Silvestre que pisou a marca de fundo. Segundo ele, as bolas devem ser batidas no interior do court e não nos limites (com este arriscadíssimo ás, ainda no primeiro set, João Silvestre reduziu para 5-6).
O conflito azedou no início da jogada seguinte. Jaime Roque serviu para fora pela segunda vez, mas João Silvestre bateu na bola, para evitar que saísse do court. Jaime Roque protestou a perda do ponto, acrescentando que a ausência de apanha-bolas, e a perda de tempo em andar à procura delas, não era motivo suficiente para quebrar as regras. O árbitro registou a sua queixa, mas deu o ponto a João Silvestre. Em retaliação, Jaime Roque serviu ostensivamente para fora do court. Embora lhe restasse uma segunda bola no bolso dos calções, para a segunda tentativa de serviço, o árbitro obrigou-o a ir à procura da primeira. Usando de cautela, Jaime Roque voltou a servir, mas a adversária subiu à rede e acertou-lhe na cabeça. O árbitro marcou 0-30 a favor de João Silvestre e ignorou a desculpa sem fundamento de Jaime Roque, que disse ter dado uma cabeçada para impedir a bola de perder-se nas silvas. O magnífico amorti com que João Silvestre quebrou a terceira bola de serviço ao adversário teve no entanto um efeito inesperado no desenlace do ponto.
A graciosidade com que a tenista chegou à bola (uma enérgica passada que lhe levantou a saia acima da coxa), revelou-lhe a cor das cuecas (um rosa velho, por sinal bem bonito). Numa demonstração de mau desportivismo, Jaime Roque caiu ao chão, com uma crise de riso. O árbitro exigiu que o tenista retomasse o lugar junto à linha de fundo, mas não conseguiu evitar um sorriso comprometedor, ao reparar na presença de espírito com que João Silvestre, antes de baixar a saia, acertou o elástico das cuecas. A tenista aproximou-se do árbitro por causa do atraso que estava a ser provocado pelo adversário, mas a veemência do seu protesto, a fúria nos seus olhos escuros e a boca ternurenta, humedecida por uma língua reguila, causaram um tal fascínio no árbitro que este não conseguiu evitar aproximar-se do seu rosto e arrancar-lhe dois fios de cabelo presos à pálpebra do olho esquerdo.
As consequências deste acto irreflectido foram dramáticas. Jaime Roque alegou perda de confiança no árbitro e João Silvestre acusou o juiz de “paternalismo machista”, tentativa de “assédio sensual”, “contacto corporal de facto”, “falta de decência” e “abuso de confiança” (ufa). Os protestos tiveram como resultado a perda de concentração. João Silvestre desperdiçou três break-points e ofereceu o primeiro set ao adversário, perdendo por 5-7.
No segundo set, Jaime Roque chegou facilmente a 4-0. O primeiro jogo, com Silvestre a servir, demonstrou bem a sua desconcentração: oito bolas de serviço mandadas para fora. Chegados ao quinto jogo, Jaime Roque abriu com três ases e preparava-se para fechar o quinto ponto quando se aproximou do court um dueto de gandulas acompanhado de uma colega de João Silvestre. Estava destinado que também Jaime Roque haveria de passar por um teste de confiança. Os assistentes do sexo masculino reprovaram a disputa entre atletas de sexo diferente e o árbitro não conseguiu evitar os risos, os dedos apontados e os gritos de incitamento. Jaime Roque tentou fazer mais um ás e desperdiçou seis bolas de serviço, permitindo que Silvestre empatasse o jogo sem precisar de mexer-se. A sétima bola entrou no quadrado de serviço, Joana respondeu com displicência, a bola tocou na rede e Jaime Roque chegou atrasado. Vantagem para Silvestre. Jaime Roque voltou a servir com vigor e Joana mal teve tempo de encostar a raquete. A bola descreveu um arco e foi cair mesmo ao canto da linha, quando Jaime Roque se aproximava da rede: jogo para Silvestre, protesto do adversário.
Com o set em 4-4, depois duma espectacular recuperação de Silvestre, Jaime Roque continuou a insistir em serviços com efeito (com o trio da audiência a gritar “fora!”). A perder por 0-40, a sétima bola de serviço entrou, Silvestre respondeu sem complicar e Jaime escorregou (risos na bancada). Vermelho de cólera, fez um serviço válido, Silvestre devolveu a bola e Jaime voltou a tropeçar: uma das sapatilhas tinha os cordões desatados. 4-5.
Silvestre aproveitou o intervalo para ir conversar com a colega (Jaime Roque tapou a toalha com a cabeça para limpar as lágrimas – perdão – o suor). Rodeando a tenista, os dois gandulas calaram-se, o mais alto olhou para o cúmplice e este afastou a franja da testa num movimento de pescoço que lhe terá parecido muito casual e que João ignorou, entretida que estava a arrancar com a ponta da raquete uma pedra entalada na sola do ténis). Com um sorriso, que a transpiração fez brilhar em cintilações rosadas nas bochechas, despediu-se da colega e acenou um “tchau” aos gandulas. Os três foram embora e o jogo recomeçou.
Joana Silvestre fez 30-0 em duas subidas à rede e conseguiu ainda um ás inexplicável, já que Jaime Roque estava na linha da bola. Queixando-se dum cisco no olho, Jaime Roque pediu a repetição da jogada. Pedido recusado. João Silvestre serviu uma última vez e o adversário deu dois passos tão rápidos que chegou ao lugar antes da bola. Com tempo para preparar o tiro, Jaime Roque disparou com tanta força ao ponto de dar meia volta e cair sobre a perna. A irmã ficou imóvel, com a ponta da raquete a tocar-lhe na canela. A bola saiu para fora pela linha lateral. “Não vale, aleijei-me”, rosnou Jaime Roque, agarrado ao joelho. “Jogo. 6-4 favorável a Joana Silvestre, 1-1, vai-te lixar”, respondeu o árbitro, que desceu da cadeira e tirou o chapéu de sol, antes de acabar o vinho que sobrava na taça. “Estou ferido, o que é que pensas?” “Levanta-te e vai buscar a caixa dos medicamentos.” “Vou eu”, prontificou-se João Silvestre. “Sim, vai tu”, concordou o árbitro, “Brinca com ele, tu és a paramédica e ele o paradoente. “E tu és o paraquê?”
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