domingo, 13 de fevereiro de 2011

o primeiro dos homens

Depois de passar a noite anterior a confraternizar com os alcoólicos do bairro no Ó Arcaz, Jaime Roque anunciou na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, que tinha feito conhecimento com “o primeiro dos homens”. “Não tem umbigo”, perguntou-lhe a irmã, enquanto punha na torradeira uma fatia de pão com um buraco ao meio. “Tinha que idade”, perguntou a mãe, que contava no calendário o número de dias que faltavam para lhe chegar a menstruação. “Como é que se chamava”, perguntou-lhe o pai, enquanto vertia o café para a caneca de mestre Vaquinhas. “Não sei”, respondeu. “A primeira coisa que lhe ouvi dizer foi já não há homens, quando pedi meio copo de cerveja. Depois de esvaziar o copo apeteceu-me beber mais e ele serviu-me o que restava na garrafa. O trabalho dele é registar a entrada de medicamentos numa espécie de armazém distribuidor e depois receber os pedidos de encomenda das farmácias. Disse que ganha muito bem, que é um excelente emprego, só trabalha seis por dia e ganha 40 contos nos dias de folga em que fica de serviço. Contou-me que os miúdos são os principais consumidores de viagra. E contou uma anedota de que ninguém se riu. E também contou que comia camarão todos os dias num bar de alterne e depois deixou de lá ir e já ninguém comeu o camarão e o dono levou um enxerto e sem ele aquilo virou um perigo. E dizia ‘isso para mim é cona’, quando queria mostrar-se repugnado. E prontificou-se a arranjar remédios a preços de produtor. E usava um tubo com gás mostarda dentro. E passou o tempo a tentar vangloriar-se de cometer actos de corrupção. E depois foi vender comprimidos para as discotecas. Já não há homens, disse antes de partir. Vou escrever uma canção sobre ele. Vai chamar-se “O Primeiro dos Homens”. “Já tens o refrão, perguntou-lhe o pai, enquanto demolhava um papo-seco no café com leite. “Só alguns versos”, respondeu Jaime Roque, que disputava o lava-loiça com a mãe e levou uma ancada que o fez deixar cair a maçã, ainda por lavar.

É quase igual a toda a gente
vende remédios a quem fica doente
trata da saúde a qualquer irmão
fala de ser corrupto com satisfação
conta anedotas sem nenhuma piada
tem os olhos abertos e não vê nada

Grande punkalhada”, comentou a irmã, que entrou na cozinha, tirou um iogurte do frigorífico e voltou a sair. “Adequa-se à personagem”, disse esperançoso Jaime Roque para o pai. “Pois, como canção também não vale nada.”

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