quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

a ilha do povo Dogonutee

Muito antes da febre ocidental pelas descobertas marítimas, época que viu os cartógrafos numa azáfama rectificativa comparável aos anúncios e desmentidos das publicações de actualidades, já os poetas e cronistas se deixavam influenciar pela vocação lendária dos marinheiros. Citando uma carta de navegação redigida por um argonauta em -500AT, o cronista espanhol Jeruaz Castrobaldo faz alusão a um arquipélago constituído por duas ilhas, localizado a Oeste dos Açores, no mesmo paralelo. A publicitação dos escritos referentes a esta descoberta foi escassa e desprovida de inspiração literária, razão pela qual não chegou a merecer uma entrada em nenhuma das edições do Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel e Gianni Gadalupi. Uma leitura comparada dalguns relatos, dispersos por várias regiões costeiras da Europa, leva-nos a concluir que durante o Inverno a ilha do norte ganhava um terço de terra ao mar, quase ficando ligada à sua ilha irmã, que ficava a Sudoeste. Durante o resto do ano, a ilha do sudoeste desenvolvia uma cauda de terra que subia pelo mar, desviava para Este e quase tocava na região mais a Norte da ilha sua irmã.
De acordo com as mnemónicas, ladainhas entre o canto e a narrativa de histórias ancestrais que passaram de geração em geração entre os descendentes do povo ameríndio Dogonutee, a ilha, a que chamavam “o suplício do homem dogonutee e a próxima vida”, era uma só, mas a água separava-a em duas parcelas de terra, para que os espíritos dos mortos não se deixassem confundir com os dos vivos. O corpos do morto era enviado dentro duma piroga a arder, para que o espírito se libertasse mais facilmente. Misturando-se com o fumo, chamado a “dança do céu”, os espíritos elevavam-se nos ares e ficavam a observar a vida deixada para trás.
Termos arcaicos, utilizados para diversos utensílios náuticos e domésticos, apontam hoje para uma permuta lexical entre os pescadores bascos e o povo Dogonutee. Sem que a história tivesse feito o relato, habitantes destes dois povos terão entrado em contacto. De acordo com a lenda basca, o nome da ilha foi abreviada para Dogonutia e, secundando a opinião dos Dogonutee, foram os primeiros europeus a afirmar que era uma só: as suas embarcações aportavam numa bacia que dava acesso a ambos os lados da ilha, para se proverem de água doce e algas marinhas (muito ricas em proteínas, cálcio e magnésio, nutrientes preciosos em viagens duradoiras).
Os navegadores portugueses não quiseram aproximar-se da Ilha da Denúncia (assim lhe chamaram, num abastardamento homofónico do nome basco; mas como também as inverdades acabam por encontrar um caminho em direcção aos factos, uma superstição entre as gentes do mar levou-os a crer que todos os que acostassem na ilha eram denunciados aos sicários de Adamastor). Para os cépticos tratava-se duma ilusão óptica, provocada por nuvens densas e baixas, o que pode ser explicado pela incineração de cadáveres levada a cabo pelos Dogonutee, sob o efeito da pressão atmosférica. À cautela, mantinham-se ao largo. Temiam que a ilha, a existir, estivesse inundada e desconfiavam da existência de baixios, arriscando naufragarem as suas embarcações de cascos fundos.
Os holandeses apelidaram-na de Dough Noote e os tripulantes das suas frotas mercantis, a acreditar nas breves menções que lhe fazem em alguns relatos, deram pouca importância a uma parcela de terra com uma parte inundada e outra coberta de ossos.
Desde que o arquipélago deixou de ser avistado e os relatos que dele se conheciam passaram a ser feitos citando os pouco fiáveis tripulantes de navios piratas, a sua localização foi posta em causa. A descoberta da América e o subsequente aumento do tráfego naval no Atlântico veio reforçar a tese de que não passava de uma pálida invenção. A sua existência acabou por ser definitivamente desacreditada e só a metáfora literária encontrou uma linha de crédito para entrar no arquipélago fantasma.
Deste lado do Atlântico, a fé de inspiração ameríndia também se encontra em perda. Podemos falar nas dimensões unificadas da separação, o que faz pensar num jogo de palavras, ou num péssimo uso das mesmas. Na costa do extremo-ocidente europeu um país demasiado velho para ter futuro e demasiado pequeno para ter passado resiste à desagregação. Esta duas improbabilidades foram resolvidas com um exercício histórico muito engenhoso, que consistiu numa abertura ao mundo pensando no país (enquanto futuro) e fechando-se no país pensando no mundo (enquanto passado). Esta assunção da identidade deve ser atribuída a uma manifestação desconcertante, a de que o mundo não é tão grande que não possa vir a ser descoberto (como foi, pelo país), nem o país tão pequeno para impedir que se torne desconhecido (como é, pelo mundo).
A disposição antropomórfica do território assemelha-se a um rosto de perfil (queixo mediterrânico, fronte atlântica, lábio leporino entre as fossas nasais do Tejo e a boca do Sado). De costas para a Europa e de frente para o mar, enforma a sua relação com o saber: a terra firme é ignorada, a terra móvel é invocada. É um país que na angústia de ser tomado pela Europa se lançou ao mar e quando se viu assoberbado pelo isolamento se voltou para a Europa. Entre as duas opções cresceram zonas de sombra: o contacto com a terra estranha, o conhecimento de gente desconhecida. O país, sob a forma de pessoas sem outra identidade que não a obsessão pelo país, ama-se a si mesmo, mas não se perdoa o estado de abandono a que votou o interesse pelo outro. A dívida amorosa foi o que reconheceu na Ilha da Denúncia.
Quem habita afinal estas ilhas, ou esta ilha? Com a sua dispersão pelo continente americano, o povo Dogonutee deixou de comunicar entre si as diversas parcelas de histórias ancestrais preservadas de pais para filhos, e não há primos, vizinhos ou conterrâneos para complementar a sua visão do passado numa perspectiva mais ampla. Poupou-nos assim a uma descoberta insuportável: a impossibilidade de viver no conhecimento da fé (que é a esperança no mistério, não o fim da viagem).
Os Dogonutee julgavam ser a célula de deus. Decorria da sua vontade libertá-lo. Ambicionavam destruir a cadeia em que a criação divina estava encerrada, mas as famílias deste povo foram separadas e deixaram de partilhar as diversas parcelas da sabedoria contida numa história completa. Resta-lhes aceder a uma célula menos vergonhosamente prisioneira numa próxima vida, o que deixa frustrado quem ainda não morreu. Durante a preparação, a sua crença anima-os a renovarem o sentido de liberdade contido no passado. Quando desaparecerem levarão consigo a divindade em que estavam contidos.
Quanto mais ténue e frágil é a demora da vida (os corpos que a encerram), menos densa é a trama da criação por libertar. Entre o ser que ambiciona viver mais anos do que os anos que pode contar e o ser que procura encurtar a duração dos seus trabalhos em vida, estamos à distância do vagar para a pressa. Os primeiros perdem-se no caminho, são alegres e distraídos. Os segundos, obstinados com a sua visão, só querem encontrar a chegada.
Os descendentes do povo dogonutee acreditam que a união com os mortos dará lugar a um mundo de novos povos. Devem agradecer à ignorância nunca terem desconfiado do que veio a acontecer ao mundo do seu povo. A ânsia de dispersar a criatividade (deus está em toda a parte) gerou as condições para a vinda de outros povos, identificados sob a fórmula poética “aquele que ensombra a minha solidão”.
A ilha dos mortos do povo Dogonutee regressa agora ao território da metáfora espelhada. Seguem-se imagens de formigas carregando mercadorias numa pressa desenfreada, feita de ultrapassagens e choques frontais. Escaravelhos contornam habilmente a encosta duma duna. Na superfície lisa do areal durante a maré baixa, pulgas saltam do interior de minúsculas crateras, onde pássaros de andar cómico enfiam os seus bicos pontiagudos, em busca de comida. Colados a formações rochosas, pólipos e cirrípedes (os perceves de que tu tanto gostas) balouçam ao ritmo da corrente. Pés descalços são molhados pelas ondas. A maré volta a encher. Chinelos são arrastados ao longo do areal. Uma onda faz uma revolução, desfazendo no seu interior uma multidão de partículas sólidas em partículas ainda mais específicas. A espuma invade a atmosfera.
Eis Jaime, amigo dos ameríndios. O seu corpo é-lhes entregue para o ritual fúnebre. Com ele, a ilha desaparece de vez, deixando em seu lugar uma antiga caderneta da colecção West (“a verdadeira história dos índios”). O rectângulo correspondente ao cromo 141, metade do díptico “Um grande orador”, está vazio. O “velho sonho” de reunificação, a que alude o capítulo correspondente da caderneta, fica por enquanto interrompido.
O que foi dado não é adquirido, o que foi adquirido perdeu-se. A reunião dar-se-á quando for recriada essa mesma realidade que resultou da perfeição do que foi vivido e que nenhum exílio deixa esquecer. É terrível aceitar que o aperfeiçoamento não extinguiu a separação, dividiu-a somente em parcelas menos dolorosas. Como um pano de croché que visto de muito perto, fio por fio, revela não estar ligado, antes desliza por nós e pontos, de acordo com formas geométricas que o compõem. Acaba sempre por restar uma ponta solta, amputada da sua continuação.

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